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Um corpo que cai

Por Olívia Santana

Um corpo que cai
Foto: Divulgação

O caso de violência doméstica que culminou com a “queda” da médica Sáttia Lorena Patrocínio, de 27 anos, da janela de um apartamento no condomínio Serra Mar, no bairro de Armação, em Salvador, na madrugada da última segunda-feira (20), lança luzes ao cenário dramático que muitas mulheres vivem, com acentuada vulnerabilidade frente aos seus agressores, nestes tempos sombrios de pandemia, e da cultura do ódio que vem alimentando o patriarcado e o sexismo.

 

O marido de Sáttia, principal suspeito, foi preso em flagrante. A polêmica agora é se ele jogou ou não a vítima pela janela. O suspeito nega. Circula na imprensa, que ele teria dito, em sua própria defesa, que Sáttia “tomava remédios controlados e tinha ideias suicidas”. A culpabilização da vítima é um artifício muito comum no universo da violência sexual e de gênero contra as mulheres. É a velha cantilena de quem aposta na desqualificação da pessoa molestada para justificar violências abomináveis e confundir a opinião pública.

 

A despeito do acusado ter provocado diretamente ou não a queda da médica, vale considerar que houve ali uma briga violenta e que o marido agressor tem responsabilidade pelo trágico desfecho. Relatos de familiares e de uma vizinha revelam que ele tem um histórico agressivo e abusivo na relação com sua companheira. No rol dos acontecimentos relatados, são mencionados cenas de ciúmes, violação de privacidade, acesso ao celular da vítima e reclamações e censuras sobre o tipo de roupa que ela usava. São comportamentos que configuram o perfil de um relacionamento fortemente marcado pela misoginia, pois possessividade não é prova de amor, mas de subjugação.

 

A misoginia é uma espécie de vírus social produzido pelo patriarcado, o ódio às mulheres que fundamenta atitudes extremamente abusivas, de tortura psicológica, de violência patrimonial, de violência física, de feminicídio. Contra ela, o feminismo já encontrou o antídoto, mas o sistema insiste em dizer não. As políticas de empoderamento das mulheres, o enfrentamento à ideologia machista que nos desiguala frente aos homens e a promoção da justiça como resposta rápida à impunidade nos abririam um caminho novo para a cura desta pandemia da violência, configurada nos dados alarmantes de violação sistemática dos direitos humanos das mulheres.

 

Em meio à crise do novo coronavírus, diversos órgãos que fazem parte da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher na Bahia alertaram, durante reunião virtual da nossa Comissão dos Direitos das Mulheres da Assembleia Legislativa, sobre a redução do número das denúncias. Apesar da subnotificação, dados da Secretaria de Segurança Pública revelam que 45 mulheres foram vítimas de feminicídio, no primeiro semestre de 2020.

 

É fato que são as mulheres negras as maiores vítimas das múltiplas formas de violências e do feminicídio. As situações de espancamento, tortura e feminicídios que vitimam este segmento da população não costumam despertar a comoção e a indignação da sociedade. Infelizmente, há uma naturalização perversa, contra a qual lutamos tenazmente, produzida pelo anestésico que permeia o olhar comprometido pelo racismo.

 

Mas é fato também que muitas mulheres brancas, de classes sociais mais altas, sofrem violência doméstica, mas não querem ver seus nomes expostos em páginas de jornal ou de redes sociais. Escondem a dor sob o manto do anonimato, e de busca de alternativas que o seu acesso a serviços privados possam ajuda-las a manter o status quo impecável aos olhos do público. De vez em quando, os corpos tombam e rasgam as cortinas, das cenas das tragédias das relações “de afeto” causando espanto à sociedade.

 

Sigo torcendo pela vida de Sáttia Lorena, para que suas fraturas se recuperem, seus ossos se regenerem, sua força e vontade de viver suplantem os limites do corpo. E que sua voz projete a verdade, que a justiça seja feita em favor dela e de todas nós que lutamos para pôr fim à violência doméstica.

 

É como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres: “no seu âmago, a violência contra as mulheres e meninas, em todas as suas formas, é a manifestação de uma profunda falta de respeito, o fracasso dos homens em reconhecer a igualdade e a dignidade inerentes às mulheres”.  Eu acrescentaria que é a covardia dos agressores, que se utilizam da força por não suportarem perder a ilusão da superioridade e de que sempre terão o domínio sobre nós. Queremos respirar a liberdade de sermos mulheres, e queremos direitos iguais.

 

Não descansarei até que todas nós sejamos livres!

 

*Olívia Santana é deputada estadual pelo PCdoB e presidenta da Comissão dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa da Bahia

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias