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O Art. 142 no pau-de-arara hermenêutico

Por Edgard da Costa Freitas Neto

O Art. 142 no pau-de-arara hermenêutico
Foto: Acervo pessoal

Todo estudante de direito aprende que a hermenêutica não se faz aos pedaços. O intérprete do direito não é uma espécie de “Jack, o Estripador” do texto normativo, livre para retirar do texto apenas o que bem lhe interessar para satisfazer suas conclusões pré-estabelecidas.

 

Por esta razão é absolutamente surpreendente a “discussão” sobre a suposta previsão de uma “intervenção militar constitucional” que estaria contida no Art. 142 da Constituição. Esta tese, surgida no submundo do whatsapp, nunca mereceu maior atenção da comunidade jurídica justamente pelo seu conteúdo marginal e atécnico.

 

Mas vivemos em tempos turbulentos, em que se faz necessário, periodicamente, ter que se provar que a grama é verde. Isto se tornou verdade com o Art. 142 a partir do momento em que um jurista de renome, Ives Gandra da Silva Martins, passou a defender publicamente a tese, com direito a compartilhamento pelo Presidente da República em suas redes sociais.

 

Em que consiste a tese, agora com uma mão de verniz jurídico aplicada pelo Dr. Ives? Em resumo, é a de que sempre que “se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, naquele ponto, a Lei e a Ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante" (entenda aqui).

 

A escolha das palavras por Dr. Ives não é aleatória. Ela surge justamente em um contexto em que o Presidente da República reclama publicamente de decisões do Poder Judiciário que, em seu entendimento, invadiriam suas prerrogativas ou violariam a Constituição, como o “Inquérito das Fake News”, a requisição e liberação do vídeo da reunião ministerial e a possibilidade de apreensão de seu telefone celular no contexto de investigação criminal.

 

O Brasil já teve um Poder Moderador. Sob a Constituição Imperial de 1824, inspirados pela doutrina de Benjamin Constant (o filósofo francês, não seu homônimo brasileiro e republicano) adotamos um sistema tetrapartite, no qual o Imperador Constitucional e “Defensor Perpétuo do Brasil” – o era, ambos, por “Graça de Deus e unânime aclamação dos povos”, como dispunha o preâmbulo daquela Carta – acumulava o Poder Executivo e um poder “neutro”, o Moderador, destinado a equilibrar conflitos com os demais poderes, o Legislativo e o Judiciário.

 

O Poder Moderador era, naquela carta, a “chave de toda a organização política” (Art. 98), e só era possível sob a forma monárquica de governo, posto que a pessoa do Imperador era inviolável, sagrada e irresponsável (Art. 99). Por esta razão o Imperador, usando esta prerrogativa, poderia, por exemplo, nomear senadores, dissolver a Câmara dos Deputados e convocar novas eleições, suspender magistrados e perdoar ou modificar sentenças judiciais.

 

A ideia de um Poder Moderador, entretanto, é incompatível com uma República Constitucional, já que não existem pessoas invioláveis, sagradas e irresponsáveis sob esta forma de organização política. Agora tripartido o sistema político, as funções moderadoras foram redistribuídas pelos outros poderes, com especial relevo para o Judiciário, responsável por interpretar o direito e exercer o controle de legalidade, convencionalidade e constitucionalidade.

 

E o Art. 142, onde ele entra nessa discussão? Podemos lê-lo, para melhor entendimento:

 

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

 

Mas, como dito antes, não é possível ler o artigo solto no espaço. É preciso ter em mente que este artigo está inserido em uma Constituição que estabelece o Brasil como um “Estado democrático de direito”, em que os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, e não “Exército, Marinha e Aeronáutica” – são independentes e harmônicos entre si e que ao Poder Judiciário compete dar a palavra final sobre a interpretação do direito e da Constituição, inclusive estabelecendo como crimes de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra o livre exercício dos outros poderes e a desobediência às decisões judiciais (Art. 85, II e VII da CF88). Além disso, o Art. 142 está posto no Título V da Constituição, intitulado “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”.

 

É evidente que numa República, estabelecida como Estado Democrático de Direito, não há espaço para que as Forças Armadas sejam invocadas para estabelecer a Supremacia de um poder sobre o outro. Disto temos precedentes: Em 1892 Floriano Peixoto, ao saber que o STF julgaria um Habeas Corpus impetrado por Ruy Barbosa em prol de presos políticos detidos ilegalmente no contexto da Revolta da Armada, mandou um recado: “Se os ministros concederem a ordem de habeas corpus não sei quem, depois, concederá os habeas corpus de que necessitarão”. O Habeas Corpus foi rejeitado por 10x1. Getúlio Vargas aposentou compulsoriamente 6 ministros em 1931. Durante o regime militar, em 1965, Castello Branco ampliou o número de ministros de 11 para 16. Com base no AI-5, em 1969, três foram aposentados compulsoriamente, e dois renunciaram em protesto (e o número de ministros voltou em definitivo, então, para 11).

 

A tese de Ives Gandra é marota, pois não estabelece como, sob que critérios, o poder armado poderia fazer esta moderação. Dilma e Collor, ambos soi-disant vítimas de “golpe”, poderiam ter invocado as Forças Armadas para barrar seus respectivos impeachments? Dado que toda decisão judicial tem o potencial de deixar a parte derrotada insatisfeita, virtualmente qualquer decisão judicial que desagrade o ocupante do Palácio do Planalto poderia ser objeto deste recurso extra-extraordinário. Qualquer veto ou decreto derrubado pelo Congresso, idem. O potencial desestabilizador dessa interpretação, assim, é infinito e imprevisível. Cría cuervos y te sacarán los ojos.

 

Boas ou más, decisões judiciais ou são cumpridas, ou são objeto de recurso. É evidente que isto não significa que todas as decisões judiciais são boas, justas ou corretas. Muitas – demais até – não o são. O STF tem se notabilizado por uma atuação ativista que é péssima, mas que não começou agora e nem se direciona exclusivamente contra o atual presidente. Mas se é fato que qualquer juiz pode errar, é fato também que no nosso sistema a prerrogativa de errar por último (por assim dizer) é do Poder Judiciário, não do Poder Executivo. E assim o é em todas as nações republicanas e liberais modernas.

 

Em última análise os erros e vícios do Poder Judiciário são corrigidos pelo tempo: os Ministros da Suprema Corte são indicados pelo Presidente da República e chancelados pelo Senado. Não estivesse o atual Presidente tão ensimesmado numa crença messiânica de que é o redentor da Pátria, se lembraria de que dois ministros se aposentarão compulsoriamente em 2020 e 2021. Em 2023 – caso se reeleja – mais dois. Poderia, então, aproveitar para buscar juristas que rejeitem o ativismo judicial e sejam dotados de notável saber e honestidade, não por reproduzir filosofia “zapzapeana”.

 

Falta às Forças Armadas a competência – quer material, quer constitucional – para “moderar” uma discussão constitucional e jurídica, qualquer que seja. Por sua natureza, as Forças Armadas não se valem (pois não precisam) da força dos argumentos, mas precisamente da força como argumento. Contra a força bruta ou se opõe uma força igual ou superior em sentido contrário, ou então se capitula, como fez o Visconde de Ouro Preto ao perceber a adesão do Exército ao golpe do Marechal Deodoro: “É o vencedor, pode fazer o que aprouver. Submeto-me à força".

 

Claro que para um espírito iliberal tudo isso são fórmulas vazias. Conversa fiada. Mas, neste caso, é mais honesto assumir-se desde logo adepto da tese eduardiana do “soldado e um cabo num jipe” e defender abertamente a velha e má quartelada do que tentar dar ares respeitáveis ao ridículo, colocando um texto constitucional no pau-de-arara hermenêutico até extrair dele a informação que se deseja.

 

*Edgard da Costa Freitas Neto é advogado e professor na Faculdade de Tecnologia e Ciências – Campus Comércio, especialista em Direito pela Escola de Magistrados da Bahia e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias