Sairemos da caverna?
Por motivos alheios a nossa vontade, de repente, percebemos-nos presos, sem a mobilidade própria e natural do ser humano, base de uma das principais garantias fundamentais, o direito de ir e vir. Imóveis, e praticamente acorrentados, nosso campo de visão se tornou restrito e absolutamente distorcido. Inseridos em nossas cavernas, revestidas por álcool em gel desde a porta de entrada até o chuveiro, a percepção da realidade passou a depender, exclusivamente, daquilo que nos é apresentado pelas autoridades constituídas e contado pela TV, em telejornais repletos de sangue, por jornais virtuais sensacionalistas, e, mais do que tudo, por meio das redes sociais. Há quem sustente, e divulgue com desenvoltura, possuir título de pós-doutorado em COVID19 obtido através de EAD por meio de vídeos de whatsapp após cinco anos de pesquisa, embora o próprio vírus, pelo que se sabe, tenha menos de um ano de existência.
Toda percepção da realidade, do mundo, da vida em sociedade, passou a depender de estatísticas apresentadas pelos governos e, sobretudo, de seres com poderes quase sobrenaturais que nos fazem chegar, pelo celular, tablet ou laptop, como num passe de mágica, as notícias mais atuais a respeito da pandemia. Rapidamente, para não perdermos a possibilidade do ineditismo, replicamos avidamente as novidades por dezenas de grupos, mesmo que estes não tenham sido criados para tratar de doenças infectocontagiosas.
Com o passar do tempo, ainda acorrentados, continuamos, cada vez mais, a enxergar somente a realidade que nos é apresentada por alguém, e a ouvir apenas os sons emitidos pelos pequenos alto-falantes dos aparelhos eletrônicos. Nenhuma outra verdade é possível, simplesmente porque, pela necessidade de proteção e cuidado com a saúde, estamos em nossas cavernas e não podemos conviver com outras pessoas, perceber os fatos do mundo real e vivenciar os acontecimentos em sociedade.
Em outras palavras, não temos a capacidade, através da percepção individual, de refletir, duvidar e criar uma consciência crítica, porque nossa visão e nossa realidade dependem, exclusivamente, daquilo que nos é projetado por outras pessoas. Essa história, cujo fim não se sabe, poderia refletir o cotidiano dos últimos meses da população inteira. Mas, na verdade, ela é um pouco mais antiga....
Trata-se da conhecida alegoria da caverna, contada por Platão, há cerca de 2.500 anos, no livro A República. Representa o diálogo entre Glauco e Sócrates, através do qual o mestre da filosofia clássica buscou revelar a necessidade da reflexão, da análise crítica e da busca da verdade. O texto clássico narra a história de pessoas que passaram toda a vida no fundo escuro de uma caverna, acorrentadas, e voltadas para uma parede. Atrás dessas pessoas havia uma grande fogueira, e, entre elas e a fogueira, uma pequena mureta. Escondido por detrás da mureta, um grupo pequeno de indivíduos se divertia produzindo sons e manipulando estatuetas de animais, homens e objetos diversos, de forma a projetar as imagens na parede do fundo da caverna. Aquelas pessoas que estavam acorrentadas nunca tiveram a oportunidade de enxergar nada além das imagens distorcidas que eram projetadas a sua frente e acreditavam que aquela era a única realidade existente.
Em algum momento, um dos prisioneiros consegue se desvencilhar dos demais, olha para trás, e começa a caminhar no sentido da luz. De início, ele descobre aquele pequeno grupo de indíviduos que fazia a projeção das imagens e, achando divertido, passa a fazer o mesmo, manipulando os sons e as estatuetas para transmitir a falsa ideia da realidade ao grupo de acorrentados. No entanto, percebe que a caverna tem uma saída, com um brilho maior vindo de fora, e direciona-se à porta, onde, olhando para o alto, percebe a luz do sol. Naquele momento, a força e imponência solar ofuscam os olhos do prisioneiro liberto, e ele, desacostumado com a luz, curva o pescoço e só consegue olhar para baixo. Passa então a enxergar apenas sombras e o reflexo no leito do rio, até que, com o passar do tempo, acostuma-se com o brilho da luz e finalmente consegue perceber a grandeza do mundo, apreciando as montanhas, as árvores, os animais e a natureza que está em sua volta.
Tomado pelo sentimento de felicidade, serenidade e paz, o antigo prisioneiro depara-se com um dilema: passar o resto da vida usufruindo sozinho a beleza que descobrira ou retornar para a caverna e contar aos companheiros todas as maravilhas do mundo?
Resolve então retornar à caverna e, lá chegando, explica que aquelas sombras na parede não refletem a realidade, mas apenas projeções distorcidas criadas por outras pessoas, e que o mundo verdadeiro encontra-se fora, iluminado pelo sol, onde é possível ter a própria percepção sobre as coisas. Entretanto, os prisioneiros, desconfiados, começam a contestar aquela versão e a duvidar da possibilidade de existir uma realidade diferente das imagens projetadas no fundo da caverna. Insistindo na explicação, o prisioneiro liberto acaba humilhado, apedrejado e, ao final, assassinado pelos demais.
Platão nos conduz à reflexão de que a verdade nem sempre é aquilo que está a nossa frente; aquilo que pensamos, com tanta segurança e autoridade, ser a correta representação das coisas. Vídeos, fotos e memes de redes sociais, muitas vezes, podem ser divertidos, mas representam apenas sombras de imagens que outras pessoas querem transmitir, às quais nós, presos em nossas cavernas, assistimos diariamente.
Não se pode, é certo, neste momento, desrespeitar as orientações para distanciamento social, mas, ainda que no interior de nossas cavernas, é preciso afastar-se do teatro das sombras produzidas por outras pessoas para, através do pensamento crítico, ousar discordar, discutir e buscar maior clareza sobre a realidade, saindo do mundo sensível para o mundo inteligível. Em vez de tirar precipitadas conclusões, e imaginar-se doutor em generalidades, lembremos do paradoxo Socrático: "Só sei que nada sei. E o fato de saber isso, me coloca em vantagem sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa."
*Jamil Cabús Neto é advogado e procurador do Estado
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