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Bravo Zulu

Por Zilan Costa e Silva

Bravo Zulu
Foto: Divulgação

Os primeiros raios dourados de sol do dia 13 de dezembro de 2018 me alcançaram na estrada. Estava a caminho da Base Naval de Aratu. Como não estava dirigindo pude reparar como a luz do sol nascente dava uma cor especial à paisagem. O dia iniciava bonito, a temperatura estava agradável e tudo prenunciava belas histórias para contar.

 

Após a chegada ao Portão e as devidas verificações de segurança, fui autorizado a entrar na Base Naval. Recebida as instruções, me dirigi até o cais percorrendo as bem cuidadas instalações, reparei como o lugar é bonito; os raios da manhã se insinuavam entre a vegetação, dando um colorido especial ao caminho.

 

O dia na vida militar começa muito cedo, todos executando suas tarefas e obrigações diárias, tudo pulsava ao meu redor.

 

Passada a segunda barreira de verificação onde já nos esperavam, a estrada tem um leve declive e uma curva à direita. Foi nesta curva que avistei, pela primeira vez, refletindo em sua pintura cinza os raios dourados da manhã, a Corveta Caboclo. Esta velha senhora estava atracada e à minha espera. Visível era a minha alegria e excitação, uma aventura se iniciava. Na cabeça duas interrogações: como seria a experiência  e que lições traria na bagagem?

 

Tudo começou com o convite do Capitão de Fragata Robson Nascimento, Comandante do Grupamento de Patrulha Naval do Leste para vivenciar os exercícios e as atividades de treinamento do grupamento, cuja missão contínua é a fiscalização do cumprimento das leis e regulamentos na nossa Amazônia Azul.

 

Chegando à escada de portaló, obtive a autorização de entrar. Uns passos rápidos, cruzamos a borda e embarcamos na Corveta Caboclo. Em segundos, fui recebido pelo simpático e sorridente Capitão de Corveta Rafael Sanctos. Me senti bem recebido e acolhido. Imediatamente fui levado ao camarote do Chefe de Máquinas, que gentilmente me cedeu suas acomodações, lá deixei minhas coisas e em seguida me dirigi à Praça d’Armas[1] para as devidas apresentações e briefing.

 

A Corveta Caboclo é uma velha senhora. Da Classe Imperial Marinho, é a última em atividade de um lote de dez unidades. Esta altiva senhora de belas linhas nasceu em 1953 e foi incorporada a armada em 1955. Está em perfeita atividade há ininterruptos 63 anos, com sinais que ainda tem muito o que oferecer.

 

Caboclo é palavra de origem tupi - Kari’boka – significa descendente do homem branco e é como chamamos os indivíduos gerados pela miscigenação do índio brasileiro com o branco de origem europeia.  Designa a figura representativa do Sertão, pessoa austera e desconfiada, de modos rústicos.  Para os baianos o caboclo tem uma tradução especial, vez que representa a vitória nas Guerras da Independência. Representa o herói esfarrapado, os batalhões de índios usando armas tribais, de negros escravos e libertos, os sertanejos, a população que voluntariamente e por conta própria se organizou para lutar pela liberdade, pela independência. É enfim um símbolo de vitória brasileira sobre a tirania e o domínio português. O caboclo é, portanto, um símbolo de conquista, do brasileiro que defende a sua pátria.    

 

Essa é a energia que sentimos ao entrar na embarcação. Não é à toa que Chico Bento, personagem de Mauricio de Souza, é o seu mascote. A corveta navega sob um lema: o “tamos aí”, ou seja, é o “estamos sempre prontos”, com boa vontade, espírito guerreiro e desembaraço, para agir quando e no que for necessário.

 

Em pouco tempo já nos sentimos integrados e vamos observando toda a movimentação; é um contingente grande de pessoas[2] executando as mais variadas fainas com uma ordem e precisão tão grande que parece que estão dançando ao som de uma única melodia, em completa harmonia, sem azáfama, sob a batuta de um maestro: o comandante.

 

Estamos nos preparando para suspender e nos fazer ao mar.

 

Apesar de nosso comandante ter mais de duas décadas na Marinha, reparo que os rostos e olhares me parecem surpreendentemente jovens, jovens unidos em esforço comum para a preservação da liberdade contra toda e qualquer tirania, opressão e perseguição. A qualquer preço. No rosto de cada um deles está estampada a ideia de honra, de código, de lealdade e sobretudo de ordem e do orgulho de ser brasileiro. São de todos os cantos da pátria, de todas as classes sociais e dos mais variados graus de formação. Ao mesmo tempo são um só corpo, uma só irmandade, um bando de irmãos.

 

O dia vai progredindo e os exercícios se desenvolvendo. A prática é a melhor forma de treinamento. É a maneira de se alcançar um alto estado de eficiência e prontidão. A constante repetição faz com que cada movimento seja natural e próprio de cada um, embora com a prática também se aprenda a trabalhar em equipe, a antecipar-se uns aos outros e a levar a cabo cada um dos inúmeros, finamente cronometrados e intrincados procedimentos envolvidos no manejo de uma belonave.

 

Prática e espirito de equipe transformam esses jovens em bem azeitadas máquinas de guerra. E preparação é tudo. Daí a grande importância que aqui se dá a educação e a formação.

 

O navio é um mundo à parte, é uma unidade independente que quando vai ao mar precisa ser inteiramente autossuficiente. No mar não existem bares ou lanchonetes de esquina, shopping centers ou farmácias. Coisas como telefone, celular, televisão, jornal ou mesmo internet não estão ao alcance. Lá as atividades corriqueiras como comer, dormir ou mesmo tomar banho precisam ser reaprendidas e dominadas. O marinheiro está inserido em um elemento muitas vezes hostil e sempre ao sabor do seu movimento. Leva algum tempo para se acostumar.

 

Para quem nunca teve a oportunidade, a compressão do que significa estar embarcado não vem naturalmente. A vida e os sentimentos são diferentes. Como acontece cotidianamente em terra, ao final do quarto de serviço, não há o retorno diário ao conforto e aconchego do lar ou ao seio da família; para o homem do mar o navio é o lar e os companheiros a família longe da família. No espaço confinado de um navio não existe a possibilidade de se afastar para aliviar as tensões do dia a dia.  É mais do que um casamento e qualquer desajuste o torna turbulento.

 

No navio o marinheiro está confinado ao seu mundo flutuante e, ao mesmo tempo, precisa obrigatoriamente ser independente, safo e só tem o navio e os companheiros para confiar quando, como se diz por aqui, se está na onça ou quando a coisa está pegando.

 

No restrito espaço de um navio todos estão juntos o tempo inteiro e a intimidade surge naturalmente, como todos acabam por se conhecer inteiramente, também não há o que se esconder. As qualidades e os defeitos, a força e as fragilidades de cada um são facilmente percebidos, descobertos e conhecidos por todos. Estar no mesmo barco é mais do que uma expressão significativa já que essa proximidade faz brotar um senso de autoconfiança e responsabilidade que pode ser percebido em cada gesto e em cada um.

 

Em outras forças militares, muitas vezes, o comando está distante, no quartel general; na marinha, no navio, o comando está junto de todos e da mesma sorte padece, seja ele “rosca fina”[3], “voga picada” ou “voga larga”[4]. Apesar da relação de todos com qualquer comandante ser de atenção e respeito, na presença de alguns há algo de diferente, esse o caso de nosso comandante; em cada gesto, em cada olhar, em cada agir é patente a admiração e o orgulho. É justamente no olhar de cada um que se vê uma chama, uma espécie de amor que traduz claramente uma intenção: a de seguir o líder até as últimas consequências, independente do sacrifício ou do custo pessoal. Essa liderança eu vi e admirei. Um líder, num navio,  quando é respeitado pelos seus homens é por que tem real valor.

 

No final desse primeiro dia, tivemos a oportunidade de observar um belo por do sol e depois, em companhia dos oficias, aproveitamos uma deliciosa refeição preparada pelo Natanael. Mais tarde, já recolhido e embalado pelo caturro do navio, antes de adormecer, fico pensando como, em cada um, é fácil se percebe que a margem para erros é pequena. A cada segundo, a diferença entre perder e ganhar uma batalha está na capacidade individual de sacrificar tudo pela equipe, para como equipe vencer ou como indivíduo perecer. Pouco vale o quão forte você é, o que importa é o quanto cada um pode e está disposto a suportar e continuar lutando. É assim que uma equipe vence. O mar nos ensina perseverança, onde o recuo de cada onda é o ponto de partida e a certeza de um novo avanço, onde o quebrar contra os obstáculos não significa parar.

 

Pela manhã nos aproximamos do porto de Ilhéus. Iniciamos os procedimentos de chegada. A tripulação toda de branco. Movimentações acontecendo ao toque do apito, cada um com um significado, uma tradição.

 

Dessa experiência ficou a percepção de que naquele microcosmo que é o navio há uma irmandade universal, cada um daqueles rostos reflete uma vida de constante treinamento e preparação para lutar pela liberdade, por um mundo melhor, por um país melhor onde o ódio, a ganância e a intolerância não façam parte da realidade, onde a prosperidade seja reflexo do esforço individual a favor de todos. É naqueles rostos guerreiros que se percebem homens repletos do amor da humanidade em cada coração, com a vida cheia da aventura de assegurar para todos nós brasileiros uma nação onde haja felicidade e liberdade. Onde uma vida bela seja possível. Essas oportunidades nos fazem acreditar que sim, nós podemos, e que há razão para se ter orgulho de ser brasileiro.

 

Uma tradição no mar é como se faz a transmissão de mensagens a distância, que desde tempos imemoriais se dá através de bandeiras de sinais. Tão importante é isso que foi criado no século XIX um código internacional de sinais em que cada número e letra é representado por uma bandeira específica. Algumas dessas letras também podem transmitir, por si só, uma mensagem especifica. É o caso do sinal Bravo Zulu. Internacionalmente, o significado dessa expressão de duas bandeiras juntas é o de uma tarefa (faina) bem executada, bem feita e sem reparo. É sucesso.

 

À Marinha do Brasil, à Corveta Caboclo, com orgulho, o meu Bravo Zulu.

 

[1] Local de estar e onde são servidas as refeições dos oficiais

[2] Normalmente são 64 tripulantes, nessa viagem somos 69: 3 convidados, 8 oficiais, 58 praças; dentre eles duas mulheres, uma tenente e uma sargento.

[3] Comandante exigente na observância de normas e regulamentos bem como na execução de fainas e tarefas.

[4] Exatamente o contrário das expressões anteriores.

 

* Zilan Costa e Silva é advogado

* Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias