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Entrevista

Brasileiros vão mais a médicos do que recomenda OMS e causam desperdício na saúde

Por Renata Farias

Brasileiros vão mais a médicos do que recomenda OMS e causam desperdício na saúde
Foto: Renata Farias / Bahia Notícias

O presidente da Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge) no Nordeste, Flávio Wanderley, afirmou que os brasileirosfrequentam mais consultórios médicos do que o necessária, de acordo com padrões estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O que parece um ponto positivo representa prejuízo para as empresas operadoras de saúde. “A OMS diz que o indivíduo adulto vai em média quatro vezes ao ano ao médico. No nosso país, a gente vai 5,6 vezes. Por outro lado, a OMS observa que a pessoa deve fazer cerca de 8,3 exames complementares ao ano. A gente faz 13,6, e o mais cruel é que 20% desses exames realizados não são resgatados nos laboratórios, ou seja, são desperdício”, explicou ao Bahia Notícias. Os dados são muito relevantes, principalmente atrelados ao contexto de crise econômica observado atualmente no país. Uma das consequências é a redução de beneficiários. “Só para dar um dado estatístico interessante, em 2000, quando a Agência Nacional de Saúde (ANS) foi criada, nós tínhamos 5 mil empresas de plano de saúde. Atualmente nós temos 930 empresas, das quais apenas 810 contêm usuários em suas carteiras de assistência. Isso é um reflexo, por um lado, da profissionalização do sistema, por outro lado, das dificuldades operacionais da empresa, sanções e exigências do ponto de vista da agência reguladora”, pontuou Wanderley. O presidente da Abramge ainda ressaltou as diferenças financeiras entre a saúde pública e privada, além de explicar o que seriam os planos de saúde acessíveis, em discussão no Ministério da Saúde.

 

Eu queria que, inicialmente, o senhor me desse um panorama da atual situação dos planos de saúde no Nordeste e, principalmente, na Bahia.

Na questão de concentração do sistema, a gente vem num processo, ao longo da última década, de fusões e incorporações. Só para dar um dado estatístico interessante, em 2000, quando a Agência Nacional de Saúde (ANS) foi criada, nós tínhamos 5 mil empresas de plano de saúde. Atualmente nós temos 930 empresas, das quais apenas 810 contêm usuários em suas carteiras de assistência. Isso é um reflexo, por um lado, da profissionalização do sistema, por outro lado, das dificuldades operacionais da empresa, sanções e exigências do ponto de vista da agência reguladora. Também houve, nos últimos anos, a questão da perda de usuários. O sistema tinha 50 milhões de usuários e hoje tem 47,5 milhões. Esse é um panorama do ponto de vista nacional. Do ponto de vista regional, uma consequência dessas fusões e incorporações é que algumas operadoras remanescentes lutam com dificuldade para atender as exigências do sistema. Muitas vezes uma pequena operadora, com margem de solvência apertada, entra logo no vermelho e fica pelo meio do caminho. Ou são adquiridas pelas maiores ou encerradas pela agência. Particularizando no Nordeste, você tem algumas empresas que são estruturadas, fortes no sistema, com atuação regional bastante consolidada. A tendência do mercado regional é ter fusões e incorporações, porque é um mercado assistencial extremamente sofisticado, o que requer um planejamento estratégico considerável. A gente agora está vivendo um momento de mudança na legislação trabalhista, sem falar da crise, então a gente vive momentos de incerteza e, como tudo, a saúde também sofre. Aqui na Bahia, por ser um grande estado e um estado grande, você tem peculiaridades regionais, municipais e, devido à sua população, você teria um número maior de usuários do que na verdade você tem. Há três grandes grupos que operam: Amil, Hapvida e Promedica, que detêm parte significativa dos usuários. Há também as cooperativas médicas, as unimeds, que têm participação bastante efetiva. Existem operadoras de autogestão, que são oriundas dos fundos de pensões das grandes estatais e, em menor escala, as seguradoras. Nós temos os quatro segmentos bem representados no Nordeste, principalmente aqui na Bahia. Não significa dizer que vivemos em um céu de brigadeiro. A realidade não é diferente da vivida no restante do país. As dificuldades do ponto de vista operacional são trabalhadas através de estratégias dos planos de saúde. A gente precisa deixar de ser plano de doença e ser plano de saúde. A gente vai passar dessa fase, com certeza.

 

Financeiramente, qual a situação atual da saúde suplementar no Brasil?

A gente observa o número de 13,5% de reajuste no ano com um contexto de salários achatados, quando o poder de compra diminuiu, o índice de emprego está lá embaixo, os desempregados são 14 milhões de pessoas. Será que esse reajuste é injusto para essa realidade? Só que é preciso olhar outra realidade, que é a do sistema de saúde suplementar, na qual existem os insumos, a frequência de utilização dos serviços, o custo assistencial cada vez mais crescente, custos administrativos... É preciso somar tudo isso para formatar o preço de um produto. A própria ANS não olha e não respeita as planilhas de custos das operadoras de saúde. Os reajustes que são oferecidos desde a chegada da agência têm um viés político porque olha para o setor hipossuficiente, que são os usuários, e submete ao crivo do setor do Ministério da Fazenda a avaliação dos custos para que promova o reajuste. Se ela for obedecer a realidade do ponto de vista do custeio e dos custos das operadoras, precisaria dar um reajuste compatível com a operação. Isso geralmente não é obedecido. Os custos e o custeio da operação estão acima desse reajuste. No ano passado oscilou entre 15% e 18% para algumas empresas. A inflação médica é diferente de outras tarifas porque ela lida com o imponderável, com cálculos de probabilidade.   A gente está vivendo mais, o que é um fator positivo, mas extremamente delicado. Esse envelhecimento populacional não é à toa, mas às custas de programas preventivos, equipamentos sofisticados que vão detectar precocemente situações de doenças que virão a acontecer geneticamente depois, descobrir abordagens para algumas doenças, do avanço tecnológico e estrutural... Todos esses são fatores que não só agregam custos, como encarecem a assistência médica. Há ainda a questão da relação médico-paciente. Eu sou médico há 40 anos e percebo que a relação de proximidade que nós tínhamos com nosso paciente mudou completamente. O médico se mantém à distância e não tem aquela magia da cura, porque o paciente já chega com um diagnóstico que viu na internet, já pede a ressonância, a tomografia. É uma relação que tem que ser retomada de outra forma para que se encontre caminhos que possam estreitar esse relacionamento e tenha todos os atores que formam a saúde. Na cidade de São Paulo tem mais tomógrafos do que o Canadá todo. Do ponto de vista quantitativo, o estado de São Paulo tem 40 milhões de pessoas e a capital tem 12 milhões, enquanto o país Canadá tem 30 milhões. Como atender com qualidade, sofisticação e atenção continuada nosso usuário? Com eficiência, diagnóstico, resolutividade, com profissionais médicos que trabalhem baseados em medicina por evidência, não pela casuística pessoal e um sistema no qual quanto mais se trabalha, mais se ganha. Existe uma mentalidade, inclusive encrustada nos nossos usuários, que é “estou pagando meu plano de saúde, então vou gastar, vou fazer um supermercado da saúde”, como se não fosse repercutir no outro paciente. O sistema tem que ser usado, sim, mas quando houver real necessidade. O profissional médico tem que estar preparado, do ponto de vista de uma residência médica efetiva, para que se possa ter nos grandes centros as patologias mais sofisticadas e disseminar para centros menores outras patologias e o atendimento do dia-a-dia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que o indivíduo adulto vai em média quatro vezes ao ano ao médico. No nosso país, a gente vai 5,6 vezes. Por outro lado, a OMS observa que a pessoa deve fazer cerca de 8,3 exames complementares ao ano. A gente faz 13,6, e o mais cruel é que 20% desses exames realizados não são resgatados nos laboratórios, ou seja, são desperdício.

 

O senhor acredita que a queda no número de usuários está relacionada aos ajustes?

Não, até porque 70% dos planos de saúde no país são coletivos. Essa queda no número de usuários está ligada diretamente à crise econômica, do ponto de vista de desligamento das empresas, desemprego do cidadão que tem um plano familiar, por exemplo. A gente está tentando resgatar, de uma forma ou de outra, mesmo sem conseguir negociar diretamente com os beneficiários. É importante reverter algumas culturas e criar novas culturas de serviço. Muitas vezes a perda de usuários reflete na saúde pública e vice-versa. Nós vivemos um momento delicado, mas somos suficientemente inteligentes e preparados para sobreviver a essas dificuldades que, com certeza, são temporárias.

 

Como seria possível a tentativa de mudar essa cultura de só ir ao médico quando se está doente?

A atenção à saúde passa pela medicina preventiva. Minha avó já dizia que é melhor prevenir do que remediar. A prevenção é simples, objetiva, ela começa no nascedouro, na maternidade. A própria Hapvida, por exemplo, tem um programa vitorioso, que é o 'Nascer Bem'. A Abramge tem um programa de atenção à saúde que tem o nome 'O parto é normal'. O nosso país é campeão mundial de cesarianas. Eu sou pediatra, neonatologista, eu sei o que eu vivi. Sou de uma época em que nem existia plano de saúde no país. O médico tinha uma relação de proximidade com a gestante, a gente acompanhava até o obstetra para o partejamento. Hoje o médico não tem tempo, desapareceram as doulas - que são as parteiras que ficavam partejando para que os médicos atuassem quando chegassem. Hoje o médico faz o pré-natal e, muitas vezes, não faz o parto. O pediatra só chega na sala de parto. Essa pediatria pré-natal é tão importante quanto a perinatal e neonatal. Eu estou falando de promoção à saúde, de reverter a expectativa. A própria gestante hoje não quer sofrer, não quer sentir dor. Ela já vai para o obstetra fazendo uma cesariana programada. Esse trabalho de atenção à saúde na relação materno-infantil a própria ANS o próprio governo federal passou a pagar mais por um parto normal em honorários médicos do que um parto cirúrgico. A cirurgia cesariana é um risco. Se a gente se detiver na atenção à saúde materno infantil, a gente já vai ajudar muito a reverter essa cultura. Por outro lado, nós temos uma cultura hibérica da ida ao médico até muitas vezes para um apoio, uma informação. As operadoras cada vez mais estão sendo estimuladas a promover programas contra o tabagismo, estímulo à vacinação, contra doenças crônicas degenerativas, doenças cardiovasculares. É possível ver cada vez com maior frequência programas de promoção à saúde em eventos esportivos. Esse país viveu uma época em que a desnutrição era nosso maior problema. Hoje é a obesidade infantil. Veja como a coisa reverte e a gente tem a mesma política. Deve haver um estímulo de promoção à saúde como um todo. Também é preciso só usar o exame sofisticado quando for uma necessidade médica. O exame é complementar. Você faz a anamnese com o paciente, se levanta e vai para fazer a complementação na mesa de exame. Hoje ele se levanta, e o paciente sai com uma receita para um exame. Hoje há uma sofisticação muito grande que acaba substituindo a coisa básica. O clínico se inclina sobre o paciente, ele tem que estar junto. Todos esses são fatores que precisam ser trabalhados. A promoção à saúde é essencial para que a gente transforme nossos planos de doença em planos de saúde. A gente já teve avanços do ponto de vista medicamentoso, por exemplo. Hoje em dia, para se ter alguns remédios, é preciso de receita, então você evita essa cultura da automedicação ou até de aceitar a indicação de qualquer pessoa. Todos esses fatores têm que passar pelas palavras organização, planejamento e promoção à saúde.

 

Nos últimos meses, talvez com menos força agora, estamos acompanhando uma discussão sobre a proposta de planos de saúde populares. O senhor acredita que isso seria uma solução para os problemas que temos hoje, tanto na saúde pública, quanto privada?

A gente precisa analisar profundamente para emitir juízo de valor. Eu gosto de analisar os valores desencadeantes. Por que surgiu essa possibilidade de se criar planos acessíveis? Estudiosos do setor publico, buscando uma ampliação do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS passou a ser obrigado, pela nossa constituição cidadão de 1988, a dar tudo para todos. Nós não temos saúde no país para todos e o SUS não disponibiliza saúde nem pessoal suficiente para isso. O que devia ser feito era definir que o SUS dá para todos o que o SUS disponibiliza. Isso levaria a uma maior eficiência e desatrelamento da seguridade social. O orçamento do Ministério da Saúde em 2016 foi cerca de R$ 200 bilhões. Se a gente potencializa esse valor para atender 205 milhões de brasileiros, vai atender mal. As operadoras de planos de saúde, em 2016, gastaram, com seus 50 milhões de brasileiros, R$ 198 bilhões. Tenho apenas 25% do número de pessoas e gastei quase o mesmo. Quando eu digo planos acessíveis, está relacionado a criar uma cultura que nossa própria legislação já impõe. Quando você vai olhar a segmentação social dos planos de saúde suplementar, tem planos individuais, familiares, de autogestão, empresariais e coletivos. Há ainda outra segmentação: planos ambulatoriais, hospitalares, ambulatoriais com obstetrícia, com odontologia, entre outros. Se você for ler o que diz o contrato, verá que só tem direito a serviços específicos. Quando você tem outro tipo de problema, o plano de saúde nega o atendimento, você vai até a Justiça, que obriga o plano de saúde a dar uma assistência que não está coberta. Esses planos acessíveis não têm o objetivo de oferecer uma saúde mais barata, mas de particularizar os planos de saúde. Com isso, se você é jovem, por exemplo, poderá pagar mais barato em um plano de saúde. De uma maneira didática e objetiva, a gente entende que um plano de saúde acessível mais simples é viável. Claro que você vai ter restrições do ponto de vista assistencial, mas é exatamente para aquela faixa economicamente ativa que tem condição de arcar com aquela necessidade. É claro que vivemos em um momento de incertezas políticas no país, então esses programas estão em stand by.