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Entrevista

Ambulatório de Microcefalia cuida de saúde física, mental e inserção na sociedade

Por Tarsilla Alvarindo / Renata Farias

Ambulatório de Microcefalia cuida de saúde física, mental e inserção na sociedade
Foto: Getty Images
Com o objetivo de ajudar famílias de criança com microcefalia ligada ao vírus Zika, o Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) inaugurou no último dia 2 o Ambulatório de Microcefalia. De acordo com o fisioterapeuta Nildo Ribeiro, chefe da Unidade de Reabilitação do Hupes e coordenador do ambulatório, o grupo de trabalho percebeu a necessidade de não só diagnosticar, mas também tratar essas crianças. “No nosso planejamento, tivemos um período de confirmação diagnóstica, então encaminhávamos as crianças para os centros que estão atendendo, como a rede Sarah, a clínica de reabilitação da Unijorge, o hospital Santo Antônio e algumas clínicas-escola”, contou ao Bahia Notícias. A partir de agora, os profissionais têm entrado em contato com as famílias para oferecer tratamento às crianças diagnosticadas na unidade. O profissional ainda afirmou que, no futuro, o serviço será aberto para todos os bebês com microcefalia. Além da saúde física, o ambulatório também se preocupa com a melhor forma de inserir as crianças na sociedade. “Nossa proposta é mostrar que podemos enfrentar as barreiras da diferença, da inclusão, do preconceito. É um processo muito difícil”, avaliou Ribeiro. “A gente não sabe como será essa geração, mas sabemos que temos que estar prontos para tentar inserir essas crianças na sociedade da melhor forma possível. Como um todo, o Brasil não é um país bem preparado para esse tipo de acolhimento”.

Como surgiu a proposta de criar o ambulatório de microcefalia no Hospital Professor Edgard Santos?
Devido aos casos novos de microcefalia associada ao Zika. Imagino que toda a população tem acompanhado o interesse pela conjuntura dessa situação das famílias e crianças, então essas demandas surgiram. Nós tentamos ajudar a população nesse sentido, principalmente porque somos um hospital de pesquisa e ensino. Primeiro nós montamos o centro de confirmação de diagnóstico, que funciona ainda às quartas-feiras, para confirmar casos de microcefalia. Nós temos também uma equipe de reabilitação que nos ajuda a traçar uma linha de desenvolvimento das crianças. Com essa equipe, nós vimos a necessidade de realmente acompanhar as crianças. No início nós fazíamos o diagnóstico e comparávamos os resultados a crianças sem sequelas. Então nós vimos a necessidade não só de encaminhar essas crianças, então propus a ideia de criar um centro de acompanhamento. Como reabilitador, eu vi a necessidade de acompanhar e tratar essas crianças. A gente sabe que, nesse caso, quanto mais precoce, melhor. A gente sabe também que a demanda no serviço público é muito grande, então essas crianças podem acabar em uma lista de espera.
 
Como funciona o serviço do ambulatório após o diagnóstico?
Nós fazemos uma avaliação com a equipe multidisciplinar, que tem terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, neuropsicólogo, odontólogo e assistente social. Essa avaliação mais precisa da criança e da família é feita após o diagnóstico. Eu gosto de lembrar que o serviço psicológico, por exemplo, não é necessário só para a criança, mas também para a família. Ao fazer essa avaliação, é traçado um plano terapêutico. A avaliação identifica o que aquela criança precisa mais no estágio que ela está. As famílias que são do interior, quando não têm acesso à reabilitação, saem com orientações sobre como pegar a criança, melhor posição para colocar para mamar, quais as melhores estimulações sensoriais e motores e marcamos uma reavaliação. As famílias de Salvador também recebem essas orientações, mas temos muito mais cuidado com as crianças do interior, porque não passarão pelo acompanhamento. Concomitantemente, a neuropsicóloga faz o acolhimento dessas famílias, mostrando que o bebê com a deficiência não pode ser rejeitado. Tem todo um cuidado multidisciplinar.
 
Esse trabalho da psicóloga é importante até porque existe um preconceito, certo?
As famílias idealizam, qualquer família idealiza o bebê. Quando há uma gravidez, os pais esperam que o bebê venha dentro de um parâmetro que a saúde estabelece como “normal”. Uma das coisas que a gente tenta trabalhar no ambulatório – uma de nossas paredes tem até uma arte doada por um artista, que é a palavra “iguais” em flores – é para que essas famílias consigam enfrentar uma sociedade que tem essa barreira do preconceito, da resistência. Então além de ajudar a família a lidar com a criança, nós vamos ensinar a família como ter a maior inclusão possível. Nossa proposta é mostrar que podemos enfrentar as barreiras da diferença, da inclusão, do preconceito. É um processo muito difícil.
 
Por enquanto, o serviço oferecido é voltado apenas para crianças diagnosticadas no próprio laboratório. Existe algum projeto para ampliar esse atendimento?
Sim. No nosso planejamento, tivemos um período de confirmação diagnóstica, então encaminhávamos as crianças para os centros que estão atendendo, como a rede Sarah, a clínica de reabilitação da Unijorge, o hospital Santo Antônio e algumas clínicas-escola. Nossa ideia era ligar para essas mães que já estiveram em contato conosco e perguntar se já estão fazendo reabilitação em outro lugar. Se não estiverem, a gente chama. Como elas passaram por nós, era uma prioridade ética e moral dar um retorno para essas famílias. Isso não significa que não exista demanda externa. O importante é frisar que esse laboratório segue a linha específica de microcefalia ocasionada pelo Zika vírus. Quem quiser nos procurar para deixar o contato, por exemplo, pode fazer isso, porque nós vamos agendando conforme as vagas vão surgindo.
 
Já existe alguma mobilização para que serviços como esse sejam oferecidos em outras regiões do estado?
O que a gente sabe, em conversa com a nossa chefia e o superintendente do hospital, é que existe um projeto nosso de capacitar profissionais do interior. Já tivemos um primeiro movimento, em Ilhéus, com uma sessão aberta para profissionais. Nós tiramos dúvidas em uma mesa redonda. Isso foi um projeto piloto.



Nildo Ribeiro durante inauguração do Ambulatório de Microcefalia | Foto: Divulgação

Já tem alguma previsão para que essa capacitação chegue a outros municípios?
Nós estamos fazendo um cronograma entre essa semana e a próxima e precisamos entrar em contato com as secretarias de saúde para agendar e saber do interesse na região. Nós fizemos o projeto piloto em Ilhéus porque houve um interesse imediato assim que criamos a possibilidade de tirar dúvidas dos profissionais do interior. E a ideia é que esses centros não fiquem desvinculados. Nós vamos manter contato com esses profissionais por videoconferência, que é uma coisa prática, e, periodicamente, acompanhar os casos mais graves para ajudar com as dúvidas dos profissionais. Essa é uma ideia que deve ser ampliada para outras doenças, como a toxina butolínica, mas esse projeto sobre microcefalia já está em andamento por conta da demanda. Isso é uma oferta do Hospital das Clínicas junto à Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab) para as cidades do interior, até porque nós sabemos que as cidades maiores do interior já acolhem essas crianças. Há ainda a pergunta sobre as crianças que moram longe desses centros e não têm acesso a nenhum tratamento. A nossa ideia é alcançar essa criança com um manual sobre posicionamento, estimulação... Não é o ideal, mas é o que podemos ofertar no momento. Estamos construindo esse manual para ofertar, principalmente, para as famílias que não têm acesso nenhum à reabilitação.
 
Como funciona esse trabalho de reabilitação com as crianças, com relação aos estímulos?
Em fisioterapia, existe todo um trabalho de estimulação motora. Tentar estimular o que chamamos de marcos do desenvolvimento, como rolar, engatinhar, sentar. Há estímulos sensoriais, como um chocalho, para que a criança vire a cabeça, por exemplo. Tudo isso mostra que a criança está passando por um processo de maturação do sistema nervoso. Nosso papel crucial é acompanhar o surgimento e desaparecimento de reflexos. A ideia é tentar fazer com que a idade motora acompanhe a idade cronológica, ou pelo menos manter uma distância mínima. Algumas crianças são mais graves, então elas não vão conseguir manter o desenvolvimento igual à idade cronológica. Há também muita estimulação sensorial, porque essas são crianças que choram muito, que têm muita irritabilidade, então tem todo um processo de ensinar à mãe como acolher essa criança próximo ao corpo e fazer um processo de compressão para que ela se acalme. Tem vários outros estímulos sensoriais e motores que ajudam no desenvolvimento dessas crianças. Sem estímulo, sei que ela vai ter prejuízos mais severos.
 
A gente vai ter uma geração de pessoas com microcefalia por conta dessa epidemia. Até que ponto essas pessoas poderão ter uma vida considerada normal?
Em saúde, a gente usa tanto isso que parece clichê, mas vai depender muito da gravidade da lesão. Nenhuma criança é igual à outra. Algumas têm alterações mais graves no sistema nervoso central, com alterações morfológicas significativas, alterações visuais, auditivas... Tudo depende sempre da gravidade da lesão. Em nossa ida a Itabuna, por exemplo, nós conhecemos um rapaz que trabalha no McDonald’s e tem microcefalia – não por conta da zika, obviamente. Você conversa com ele e percebe que ele tem um comprometimento cognitivo, uma interação social moderada e trabalha. Com ele nós vimos que, dependendo da gravidade da lesão e dos estímulos, essa criança pode ser inserida. Sendo mais direto com relação à pergunta, como a microcefalia relacionada à zika é algo novo, nós não temos respostas para todas as questões. A medida que as crianças vão crescendo, nós vamos descobrindo. A gente também não sabe como será essa geração, mas sabemos que temos que estar prontos para tentar inserir essas crianças na sociedade da melhor forma possível. Como um todo, o Brasil não é um país bem preparado para esse tipo de acolhimento. Tem uma coisa que me incomoda muito, que é a barreira atitudinal na sociedade. As pessoas olham, os ambientes não são totalmente adaptados... Como você para o carro em cima de uma calçada, por exemplo? Uma pessoa com cadeira de rodas não vai conseguir passar. A gente não vê essas pessoas no shopping ou no teatro porque existem essas barreiras físicas e de atitude. Nosso papel na reabilitação é mostrar que existem diferenças, independente de deficiência. A sociedade precisa estar preparada para receber esses indivíduos.
 
Quais são as maiores dificuldades encontradas hoje para desenvolver o trabalho no ambulatório?
Nós tivemos um momento grande de crise, então o laboratório foi montado com muita boa vontade dos parceiros do hospital, do superintendente para conseguir o espaço e material. Não foi fácil. Hoje nós temos ainda esse problema. Como somos do serviço público, o que a gente pode fazer é reclamar e pedir por investimento. Nós entramos agora em um edital para tentar conseguir verba para financiar pesquisa e as questões do laboratório. Eu estou buscando treinamento com profissionais de fora da Bahia para desenvolver coisas específicas. É uma luta diária. Nossa característica é não ficar se lamentando, mas tentar resolver. Ainda não há uma verba específica para isso, então temos que buscar apoios.
 
Qual a média de crianças que é atendida na unidade?
No momento, nós realizamos atendimentos às terças e quintas, das 10h às 13h. As pessoas podem achar pouco, mas estamos primeiro chamando as crianças e observando a demanda. O ambulatório está aberto há duas semanas. A média é de 28 atendimentos por semana, considerando que algumas crianças vêm nos dois dias. Nós precisamos aproveitar o espaço e o horário dos profissionais. Se houver necessidade, vamos abrir outras turmas também.
 
Como profissional de saúde, o senhor está otimista com relação ao acolhimento dessa demanda?
Eu vou responder do ponto de vista profissional e pessoal. Eu sou otimista por natureza. Acho que o reabilitador tem que ser. Quem trabalha com reabilitação encontra todo um universo devastado por algo que o paciente não esperava, então você tem que entrar e tentar juntar todos aqueles cacos. Eu não sou negativista mesmo com a pior sequela, seja de criança ou adulto. O que eu costumo dizer é que a doença veio, a família não escolheu, mas eu escolhi ser reabilitador, então preciso ter todos os instrumentos para isso. Quando a família adere o tratamento, aquela pessoa quer ter uma vida. Quem é reabilitador tem obrigação de mostrar que existe essa porta. Eu sou otimista, não achando que vamos recuperar todas as crianças que passarem por nós, mas chegar ao maior grau possível.