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Entrevista

'Aborto não pode ser moeda de troca para estabilidade política', afirma pesquisadora

Por Bruno Luiz

'Aborto não pode ser moeda de troca para estabilidade política', afirma pesquisadora
Foto: Emília Silberstein / UnB Agência
Professora de Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), Débora Diniz é uma das maiores autoridades na discussão sobre aborto no Brasil. Uma das responsáveis pela ação que levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a liberar, em 2012, a interrupção da gestação de fetos anencéfalos no país, Débora fala em entrevista ao Bahia Notícias sobre aborto, tema ainda tabu na sociedade brasileira. A professora, que encampa a bandeira pela descriminalização e legalização da prática no Brasil, critica a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 5.069/13, de autoria do presidente da Casa, Eduardo Cunha, que prevê a criminalização do anúncio de métodos abortivos. Para ela, as propostas em curso no Congresso Nacional que podem derrubar conquistas femininas não apenas têm viés machista, mas são também moedas de troca para garantir a estabilidade política do país. “Em momentos de grande instabilidade política como este em que vivemos, questões sensíveis ou relativas a populações vulneráveis, como são as mulheres, são as primeiras a serem negociadas como tentativa de solução para o que nos angustia” A pesquisadora do Anis também ataca a proposta do “Estatuto do Nascituro”, que pode voltar a proibir a interrupção da gestação em casos previstos na Lei.  “É um atalho para se enfrentar a questão do aborto por vias tortuosas, e eu diria muito perversas”, brada. 

O aborto é, em muitos casos, tratado como uma questão religiosa no Brasil, sempre com posicionamentos contrários das doutrinas à prática. Por que o aborto ainda é visto com este viés, e não como uma questão de saúde pública no país?
Há um equívoco nesta interpretação de que aborto seria tema para contra ou a favor e, mais ainda, de que aborto seria tema de domínio da esfera religiosa. As religiões devem ser livres para ter suas posições sobre o aborto, inclusive falar dela em seus espaços de convivência, como templos e igrejas. No entanto, uma coisa muito diferente é como o aborto deve ser regulado pelo estado brasileiro. A regulação de temas, não somente os de intensa controvérsia, mas aqueles relacionados às necessidades de saúde precisam ser entendidas que são questões de impacto na vida das pessoas. O entendimento como questão de saúde pública é o único pressuposto possível num estado democrático de direito. As mulheres fazem aborto, têm consequências pelo aborto e morrem pelo aborto. 

Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) aprovou o PL 5.069/13, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que criminaliza o fornecimento de métodos abortivos. A senhora avalia que, com este projeto, há um recrudescimento com relação aos direitos das mulheres no Brasil?
O projeto não foi aprovado e eu tenho, não diria um otimismo, mas uma confiança no processo democrático brasileiro de que tamanho retrocesso não vá acontecer. O que este simples debate legislativo representa? Representa que, em momentos de grande instabilidade política como este em que vivemos, questões sensíveis ou relativas a populações vulneráveis, como são as mulheres, são as primeiras a serem negociadas como tentativa de solução para o que nos angustia, para que nos dá instabilidade política. A instabilidade econômica se converte em instabilidade política, e direitos e proteções de populações vulneráveis são colocados na rota de negociações para serem ainda mais fragilizados. 

Este mesmo projeto prevê que a comprovação do estupro por parte da mulher deve ser feita através de exame de corpo delito, algo não necessário na norma técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, de 1999. Como você avalia a volta de uma norma que, anteriormente, não era prevista?
A política pública brasileira determina dois critérios para o atendimento às mulheres vítimas de estupro. Um deles é o da palavra da mulher de que foi violentada e o segundo é que a gravidez esteja no teto de 20 semanas. Estes são dois requisitos: um de proteção à saúde dela, pelo limite gestacional, e o outro é o reconhecimento da verdade das mulheres quando elas alcançam os serviços de saúde. A entrada da polícia, de regimes periciais sobre o corpo, são práticas de fiscalização, mas que partem de um pressuposto muito cruel sobre como nós reconhecemos as mulheres na vida pública: de que as mulheres não são seres plenos de direito, que não são cidadãs em pé de igualdade e de que sua palavra estaria sempre sob suspeita. Mas há implicações imediatas nessa possibilidade de alteração legislativa: é impor novas barreiras, barreiras de sofrimento e de exposição às mulheres que viveram graves violações de direitos, como no estupro.
 
A CCJ da Câmara, que aprovou o PL que criminaliza o anúncio de métodos abortivos, é composta majoritariamente por homens, assim como a própria Câmara, algo indicativo de que são homens decidindo sobre direitos femininos. As aprovações de projetos com teor semelhante a este buscam retirar as conquistas femininas?
O Congresso Nacional neste momento é a representação do poder patriarcal no Brasil. Por representação do poder patriarcal, quero dizer não apenas que são homens legislando e propondo leis sobre a vida das mulheres. Pode ser até que existam mulheres neste conjunto de homens, mas é um pensamento masculino sobre como deve ser a vida social. Há uma intensa resistência das mulheres dos movimentos de mulheres. É um exemplo de como, diante de uma força conservadora como essa que há nas Casas Legislativas, há uma contraforça dizendo: “Eduardo Cunha, você não nos representa”. Aquilo não é só uma brincadeira em forma de expressão, é verdadeiramente uma resistência, que seria uma resistência muito mais forte se não houvesse uma onda conservadora tão forte no Congresso Nacional.

O Estatuto do Nascituro também é algo que veio à tona. Uma das principais críticas do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres ao projeto é que ele pode voltar a criminalizar casos em que o aborto já é permitido pela legislação. Como a senhora avalia esta proposta? 
O Estatuto do Nascituro é uma tentativa enviesada de enfrentar a questão do aborto pela tentativa de reconhecimento de uma nova figura jurídica no Brasil, que seria o conjunto de células do embrião, do feto ainda no útero da mulher, como ser de igual proteção de direitos que a própria mulher. É um atalho para se enfrentar a questão do aborto por vias tortuosas, e eu diria muito perversas. 

Dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) revelam que, ao completar 40 anos, mais de uma entre cinco mulheres já fizeram aborto no Brasil. Estes números mostram que esta é uma prática mais comum do que se imaginava. No entanto, o aborto ainda é assunto tabu no Brasil. Quais as consequências deste silêncio em torno do tema?
Aos 40 anos, pelo menos uma em cada cinco mulheres fez aborto, o que mostra que isto é um evento comum na vida reprodutiva das mulheres. O silêncio legislativo, esse retrocesso político, é só um sinal de como o tema do aborto, ao ser tratado como tabu e como moeda de troca para alcançar a estabilidade política, parte de uma desconsideração das necessidades de vida das mulheres com direitos e proteções. O aborto é um fenômeno comum às mulheres, tem igual distribuição pelas regiões do Brasil, com maior prevalência no Nordeste que no Sul, em mulheres menos educadas e mais jovens que com maior escolaridade. O perfil dela nós já conhecíamos antes da Pesquisa Nacional do Aborto. É uma mulher jovem, entre 20 e 29 anos, já tem um filho, é religiosa, católico-evangélica, e encontra modos na própria comunidade de realizar o aborto. Este é um perfil que mostra algo muito importante: o aborto é um evento comum na vida das mulheres e a mulher também é uma mulher comum.

A maior parte das mulheres que fazem aborto no Brasil é negra e pobre. Este tabu em torno do tema também teria um viés racista e do preconceito de classe?
A maior das mulheres que faz aborto no Brasil, em particular aquelas em situações ilegais, são pretas e pardas. Afirmar que essas mulheres são negras seria uma expressão do racismo ou uma expressão de que a desigualdade social no Brasil tem cor? Afirmar que a precarização das mulheres mais pobres e, portanto, das mulheres negras é maior que aquelas das elites, que majoritariamente são brancas, não é uma prática racista, mas um reconhecimento da racialização da estratificação social no Brasil. É importante afirmar e repetir de que há cor e classe na precarização da vida das mulheres pela ilegalidade do aborto.

A penalização do aborto é a maior responsável pela morte de mulheres durante a prática? O Estado seria conivente com isto?
Eu não tenho a menor dúvida de que o estado brasileiro, ao criminalizar o aborto, ao penalizar uma prática reprodutiva comum entre as mulheres e as mulheres comuns, não é só conivente com a enorme mortalidade, com o risco à saúde das mulheres, como também é responsável pela precarização da vida. Quando falamos em descriminalizar o aborto, em legalizar o aborto, isto não significa nenhum dever de fazer o aborto para nenhuma mulher. É simplesmente o Estado brasileiro reconhecer que o aborto é um evento comum na vida das mulheres, é uma necessidade reprodutiva da mulher comum e que as mulheres podem e devem ser informadas para escolher qual será a melhor decisão para sua própria vida. Não é estado, com o uso da força penal, com o uso da vigilância policial, com o uso do escrutínio médico que vai, não só impedir e, ao contrário, vai estabelecer forças para não cuidar dessas mulheres. Essa é a principal resistência, principal mudança que se procura provocar, quando dizemos que a única saída é a legalização do aborto.

Recentemente, um levantamento feito pelo próprio Anis revelou uma diminuição no número de locais liberados para fazer o aborto em casos permitidos pela lei no Brasil. Isto é sinal de que está se fechando o cerco ao aborto no país?
Eu não saberia dizer se os dados se os dados que encontramos no Censo de Serviço de Aborto Legal mostram que houve um aumento ao cerco ou se nunca houve a devida regulamentação dos serviços. Eu diria que há duas hipóteses que teríamos que testar em um estudo histórico. Eu não sei dizer se, algum momento, houve a regulamentação que foi alardeada pelo Ministério da Saúde, entre 66 e 68 serviços, ou se sempre foi esta fragilização que nós encontramos. O que posso dizer é que os dados são muito mais frágeis que poderíamos imaginar. A situação de acesso aos serviços abortos legal no Brasil é precária, estigmatizadora e repleta de barreiras às mulheres.

Como pesquisadora, você já deve ter visitado clínicas de aborto clandestino no Brasil e ouvido muitas histórias de mulheres que abortaram ilegalmente.  O que você já viu e ouviu e que a leva a reafirmar sua posição pela legalização do aborto? 
Eu nunca fiz nenhuma vista em clínica de aborto legal no Brasil. É uma realidade que não conheço, tanto como cidadã, tanto quanto pesquisadora. Eu arriscaria a dizer que não há estudos no Brasil sobre as clínicas ilegais. O que pode ser dito sobre elas? É justamente o fato do desconhecimento. Se não sabemos nada, deve ser uma realidade assustadora e o desconhecimento sobre o que ali acontece só nos provoca ainda mais sobre a urgência de que somente a legalização do aborto nos permitirá controlar e proteger essas mulheres que, muitas vezes, precisam recorrer a estes ambientes perversos da clandestinidade.
 
Há um debate sobre em que período da gestação o aborto poderia ser feito sem considerado “assassinato”.  Já existe consenso na ciência sobre isto?
Assassinato não é categoria científica e muito menos médica, é uma categoria moral, ainda mais quando se fala em conjunto de células e em fetos. Do ponto de vista estritamente jurídico, o nascituro é o recém-nascido com vida. O debate não é científico sobre quando inicia a vida, mas é um debate moral sobre como nós vamos e que proteções e interesses daremos aos fetos. Assassinato é uma categoria de julgamento moral da qual pressupõe que o feto é uma pessoa em condições de disputa e de igual direitos que uma mulher.

A senhora é considerada como uma das maiores responsáveis pela ação que levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a aprovar o aborto para fetos anencéfalos no Brasil, em 2012. Na época, todo o processo que culminou na aprovação da lei foi considerado uma nova forma de tratar aborto no país. De lá para cá, houve um retrocesso nas discussões sobre o tema?
A decisão do Supremo sobre anencefalia foi histórica. Pela primeira vez, o aborto fez parte de uma decisão da Suprema Corte brasileira. De lá para cá, nós temos duas forças com muita intensidade no confronto. Nas últimas semanas, o que tivemos com os movimentos de mulheres nas ruas, chamado de “Primavera das Mulheres”, mostram um reação importante. Mas, ao mesmo tempo, temos um Congresso Nacional muito conservador. É a contraforça das ruas com essa representação política muito conservadora e contra as mulheres. Não diria que houve um retrocesso, mas uma intensificação da questão do aborto relacionado às mulheres no cenário político brasileiro.