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Entrevista

'Mulher quer parto normal, mas é convencida que é defeituosa', diz doula sobre epidemia de cesárea

Por Francis Juliano / Rebeca Menezes

'Mulher quer parto normal, mas é convencida que é defeituosa', diz doula sobre epidemia de cesárea
Fotos: Luiz Teixeira / Bahia Notícias
Chenia D'Anunciação é doula – pessoa que acompanha mulheres na hora do parto. Apesar de ser uma ocupação recente e pouco conhecida, a função é bem antiga. Embora pareça algo simples, a técnica exige muito estudo, leitura e prática. Chenia está envolvida na militância pelo parto humanizado e acredita que a escolha por cesarianas no Brasil é uma epidemia. "Acho que é uma violência, principalmente da forma como é feita no Brasil. Muitas vezes a mulher começa a gravidez querendo um parto normal e no final muda de ideia porque ela foi convencida pelo profissional e pelo próprio sistema de que ela é defeituosa, de que a bacia dela é estreita, que o bebê é um suicida que está se enrolando no cordão umbilical...", lamentou. Ao Bahia Notícias, a doula explicou qual sua função durante a gestação, como pode ajudar na hora do parto e como é importante que ele ocorra com respeito à mulher, à criança e à família, mesmo que os profissionais de saúde ainda não estejam acostumados. "Alguns profissionais, por ignorância, acham que a doula vai atrapalhar, mas os que estão antenados até preferem o acompanhamento", conclui.
 

Bahia Notícias: O que é uma doula? O que ela faz?
 
Chenia D'Anunciação: Nós sempre tentamos explicar pela origem da palavra. O termo "doula" é utilizado no mundo inteiro, a grafia é a mesma e significa "a mulher que serve". É uma profissão nova, mas a função já é bem antiga. Muitas mulheres já tinham no parto esse acompanhamento, esse suporte além da parteira, que a encorajava. Então a doula faz isso. Hoje em dia nós fazemos a preparação para o parto, acompanha o trabalho de parto e também o pós-parto. É basicamente isso.
 
BN: E qual a diferença entre doula e parteira?
 
CD: A doula não assiste parto - ou seja, realiza o procedimento. Mesmo que ela seja enfermeira obstetra, obstetra ou parteira, ela não pode fazer o parto sozinha. Ela vai acompanhar um desses profissionais, que são capacitados e reconhecidos pelo próprio Ministério da Saúde como pessoas que podem promover o nascimento da criança.
 
BN: O que uma pessoa deve fazer para se tornar uma doula?
 
CD: A gente faz um curso, que geralmente dura quatro ou cinco dias. Eu fiz o meu em São Paulo, por exemplo. Além disso, é necessário bastante leitura e estudo, fazer outros cursos, acompanhar partos, conversar com gestantes...
 
BN: Aqui na Bahia existe algum curso?
 
CD: Não, ainda não. Já existiram alguns, mas os melhores mesmo são em São Paulo, como o do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama), no Centro Oeste também há alguns, além de ter em Recife e Fortaleza.

BN: Você falou que são cinco dias de curso. Não parece que é um curso muito difícil de ser montado. Ou é?
 
CD: Não, não é difícil de ser montado.
 
BN: E porque você acredita que não há cursos em Salvador, por exemplo?
 
CD: Porque a demanda não é muito grande. A gente tentou trazer um curso para cá, mas não aconteceu. Nós pensamos em montar um curso de doula legal aqui em Salvador, porque agora está um "boom" e todo mundo quer ser doula. Só que muitos pensam que é só fazer um curso de quatro dias e sair por aí distribuindo cartão. Não é bem assim. Tem todo um trabalho por trás disso, tem conhecimento, tem que acompanhar outra doula para ganhar prática... Ainda não foi montado um grupo aqui porque não deu, mas a Santa Casa de Misericórdia com o Hospital José Maria de Magalhães tem um curso de doulas voluntárias, que são treinadas para atuar nessa maternidade. Só que esse é um curso de alguns meses, em que se aprende a acompanhar a realidade desse hospital, que atende casos de alto risco.
 
BN: Existe algum requisito prévio para quem quiser ter essa ocupação?
 
CD: Não tem muitos pré-requisitos. A pessoa não precisa ser necessariamente da área de saúde. Geralmente se pede nível médio e o curso. Mas depois a pessoa tem que estudar, se informar. E, na maioria das vezes, é a mulher que te procura. Eu, por exemplo, não sou vinculada a nenhuma maternidade nem profissional de saúde.
 
BN: E como as pessoas te encontram?
 
CD: Eu tenho um blog - www.doulasalvador.com.br - e algumas pessoas me indicam. Como a gente está sempre na causa, tem os grupos no Facebook. Nos próprios grupos nacionais têm listas das doulas mais conhecidas. Tem indicações de alguém que já pariu comigo, e fala com a irmã ou com uma amiga. 
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BN: Já houve alguma conversa com a Secretaria de Saúde do estado ou do município sobre a questão do trabalho das doulas, ou até mesmo incentivos a cursos?
 
CD: Não. Nós acabamos participando das reuniões do Fórum Perinatal, que são realizadas mensalmente com diretoras de maternidade e o Ministério Público. O próprio colegiado de maternidades tem ciência das doulas. Mas o grande problema da implantação desse serviço nos hospitais é, a meu ver, o fato de ser voluntário - porque essa mulher vai para acompanhar e às vezes ganha transporte, mas em alguns casos nem isso.
 
BN: E não pode ser remunerado?
 
CD: Pode. Já é considerado como ocupação.
 
BN: Já é regulamentado?
 
CD: Já. Não como profissão, mas como ocupação. Foi regulamentado em janeiro de 2013 e acrescentado no Código Brasileiro de Ocupação.

BN: Aqui em Salvador como é que vocês mantêm esse debate acesso? Depois do caso Adelir, no sul, houve algumas manifestações...
 
CD: Nós fizemos aqui também. Tivemos, inclusive, um indicativo de audiência pública com o Ministério Público para discutir sobre violência obstétrica.
 
BN: Nos parece que é uma ocupação em sua maioria feminina. Como é a participação dos homens atualmente?
 
CD: Aqui em Salvador tem um homem que fez o curso de doula. Não há restrição. Vai depender só da gestante. Algumas se sentem mais confortáveis com uma mulher, outras com um homem. Mas são poucos homens.
 
BN: O próprio marido pode fazer o curso e atuar nessa função?
 
CD: Ajudar é uma coisa, ser doula é outra. O marido ajuda bastante. A gente inclusive faz um trabalho de preparação dele, de como ele pode ajudar. Mas as doulas são profissionais mesmo, até porque somos treinadas para resolver alguns problemas que possam aparecer. Por exemplo, a mulher que está com o bebê sentado. Então nós vamos na casa dela, fazemos uma série de exercícios para tirar esse bebê, tudo de forma natural. Dificilmente o pai vai entender se o médico disser que a criança está alta, no grau zero, ou saber as manobras para descer o bebê. Nós sabemos o que fazer caso a mulher esteja com muito frio, que pode ser provocado por tensão. Se ela sente dor na lombar, nas pernas, na coluna, você já sabe como vai atuar.
 
BN: Você falou que tudo é feito de forma natural. Uma mulher pode contratar uma doula para uma cesária?
 
CD: Pode, mas não é normal. Eu não acredito em cesária eletiva. Eu não sou a favor, acho que é uma violência, principalmente da forma como é feita no Brasil. Muitas vezes a mulher começa a gravidez querendo um parto normal e no final muda de ideia porque ela foi convencida pelo profissional e pelo próprio sistema de que ela é defeituosa, de que a bacia dela é estreita, que o bebê é um suicida que está se enrolando no cordão umbilical, que ela tem muito líquido, que está com pressão alta, com pressão baixa... Então eu não tenho uma função em uma cesária eletiva. A não ser que seja uma indicação clínica correta. Por exemplo: uma mulher que está com a placenta prévia, que é quando a placenta fecha o colo do útero, não pode entrar em trabalho de parto, porque tanto ela quanto o bebê podem morrer. Uma mulher com herpes genital ativa tem que ter cesária. Nesses casos eu iria, mas nunca aconteceu.
 
BN: Do caso Adelir para cá, você já notou um aumento na procura por doulas e por partos mais humanizados?
 
CD: Sim, as mulheres ficaram mais atentas. Esse caso foi muito violento. E aumentou não só a procura como a atenção sobre como organizar esse parto, como proteger essa mulher. Porque acaba sendo uma odisseia, uma saga, para se ter um parto respeitoso.
 
BN: Os profissionais de saúde aceitam essa questão?
 
CD: Aqui em Salvador pouquíssimos profissionais são adeptos ao parto humanizado - que não é parto normal ou em casa, mas sim aquele em que se respeita a mulher, a criança, a família. E é muito difícil. Poucos são aqueles que eu confio ou indico. Além disso, se observa uma certa resistência.
 
BN: Já teve algum caso de um profissional que não quis permitir o acompanhamento da doula?
 
CD: Vários. Teve uma marcha no ano passado, inclusive, por causa disso. Nós caminhamos até o Hospital Português, que sempre estava impedindo. Porque a mulher tem direito, por lei, a um acompanhante. Mas a doula não é considerada acompanhante. Ela é uma profissional. Então alguns médicos não permitem que ela acompanhe até o centro de operação. Uma mulher com uma doula fica mais tranquila, está melhor preparada, ela sabe que não precisa ser feito o exame de toque - porque não evidências de que ele sirva para alguma coisa -, sabe o que é cordão enrolado, sofrimento fetal... Mas alguns profissionais, por ignorância, acham que a doula vai atrapalhar. Os que estão antenados até preferem o acompanhamento.
 
BN: Como você decidiu ser doula?
 
CD: Eu decidi depois de ter uma. Uma doula acompanhou o nascimento da minha filha e eu comecei a me envolver com essa questão da militância, a estudar, a ler. E aí eu decidi que queria ajudar outras mulheres a terem seus filhos de forma respeitosa 
 
BN: Pode-se dizer que a formação nas universidades e o mercado são adversários nessa luta pelo parto humanizado?
 
CD: Sim, porque o profissional já aprende na universidade tudo ao contrário. São professores que estão ali há muito tempo, que não se atualizam, que não lêem. A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) já tem quase 20 anos e, nesse tempo todo, vários profissionais mantêm as mesmas práticas e as passam para os seus alunos. Então essa formação já é defeituosa. E esse profissional acaba tendo um trabalho duplo: o de aprender e o de desaprender, o que pode deixá-lo mais engessado.
 
BN: Mais de 50% dos partos no Brasil são cesárias e em hospitais particulares pode chegar a 80%. Esse é um dado alarmante?
 
CD: Sim. É uma epidemia nacional.
 
BN: Vocês vão fazer mais manifestações?
 
CD: Não há nada planejado. Nenhum ato foi planejado nacionalmente. Mas a militância sempre acompanha os casos, tem contato com o as doulas em todo país.
 
BN: Vocês iam inclusive exibir um filme, que acabou suspenso por causa da greve da polícia militar...
 
CD: Isso. "O Renascimento do Parto" é um filme que mostra a realidade sobre a assistência ao parto no Brasil. É impactante e mostra os profissionais de ponta do país, as novidades na área. Ele mostra, inclusive, como essa mulher é convencida a fazer uma cesária. Porque há um grande mito, na verdade. As pessoas dizem "ah, mas ela queria fazer cesária". Não. A maioria queria parto normal. Mas quando essas mulheres ouvem histórias de partos normais, elas acabam traumatizadas. "Fiquei sozinha por três horas", "não me deram nada para comer", "me xingaram, me bateram", "não me deixaram falar com ninguém", "fiquei x dias tomando soro, sentindo contração", "toda hora vinha alguém fazer exame de toque em mim"... Nas universidades-escola, o médico faz exame de toque, depois vem o residente... Quando essa mulher volta para casa e conta essa história, ninguém quer passar por isso. Então em uma cesária eu me programo, me arrumo, faço a unha, marco para o dia do aniversário do meu marido, da minha mãe... Eu agendo tudo direitinho, tiram meu bebê, me dão ele, o médico diz que é mais seguro, então pronto. Ela não que sentir dor. Essa dor existe, mas é potencializada pelo tanto de violência que se pratica. Mas a dor é muito maior em uma cesárea, só que a mulher está sedada, cheia de remédios, e não sente.
 
BN: Essa discussão corre em setores mais esclarecidos, quando muitas vezes são as mulheres mais carentes que precisam de mais acompanhamento. Vez ou outra ouvimos casos de mulheres que perderam os filhos na porta do hospital por falta de atendimento. Como vocês fazem para que essas informações sobre parto humanizado cheguem para as famílias mais carentes?
 
CD: Para mim, um dos meios de divulgação aqui em Salvador é o projeto de extensão da UNEB chamado "Acolhendo a Gestação, que é coordenado pela professora Mary Galvão, enfermeira obstetra, em que a gente promove reuniões mensais abertas à comunidade. Nós fazemos um amplo chamado. O que eu sinto falta nesse movimento é justamente isso, porque essas informações ainda não chegam de forma efetiva para quem é atendido pelo SUS. Poderiam haver cursos nas próprias unidades de saúde - aliás, existem, mas não da forma como a gente gostaria. E antes disso mesmo. As meninas da rede pública de educação podiam ser chamadas para falar sobre seu próprio corpo, sobre gestação, sobre sexualidade. A única coisa discutida, quando se fala, é o uso de camisinha para evitar gravidez e DSTs.
 
BN: Você falou que há voluntárias e doulas que cobram. Qual é a faixa de preço?
 
CD: Cada doula determina um preço a partir do serviço que ela vai oferecer. Geralmente se cobra entre R$ 800 a R$ 1.500, mas não é um valor fechado. A gente conversa. Eu mesma trabalho para mim, então tenho flexibilidade de falar. Hoje eu cobro cerca de R$ 800, mas a gente pode parcelar, ou se a mulher não tiver esse valor pode fazer um desconto. Eu nunca vou deixar de assistir uma mulher porque ela não tem dinheiro. Eu já assisti partos de mulheres que não me pagaram nada.