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Coluna

Desmistificando a Saúde Mental: O angustiante regresso

Por Júlia Solano

Desmistificando a Saúde Mental: O angustiante regresso
Foto: Divulgação
O filme O Regresso, dirigido por Alejandro Iñarritu e ganhador de três Oscars (melhor ator, diretor e fotografia), é, definitivamente, uma experiência impactante. Além das belíssimas cenas e das inúmeras qualidades técnicas, não há como nos sentirmos meros espectadores das barbaridades vivenciadas pelo protagonista Hugh Glass (Leonardo de Caprio) no decorrer da trama. Na verdade, somos atravessados pelos conflitos vivenciados por ele de tal forma que é possível dizer que além de uma experiência contemplativa, assistir ao filme é, sobretudo, uma experiência de angústia.

Mas, o que nos causa tanta angústia no filme? O Regresso aborda principalmente a questão do conflito, tendo como pano de fundo o eterno embate homem X natureza, abordado pelo diretor em toda sua crueza. A este conflito sobrepõe-se outro, muito mais íntimo e, talvez, ainda mais assustador: o conflito do homem consigo mesmo. Após ser atacado por um urso, ser traído e abandonado por seus companheiros, Hugh Glass, apesar de seu estado de absoluta vulnerabilidade, decide continuar lutando pela sobrevivência, movido apenas pela sede de vingar a morte de seu filho assassinado. O seu ódio, ira e agressividade, ou seja, os sentimentos e instintos tidos como os mais vis, é justamente o que lhe mantêm vivo nas condições mais adversas. Iñarritu, neste momento, descortina qualquer pretensão de explicação ingênua ou otimista sobre esta questão, escancarando para o espectador o que seria a verdadeira essência da natureza humana.

Impossível não associar a visão do diretor às ideias de Freud. Para o autor, a agressividade nos acompanha muito precocemente, desde os primeiros anos de nossas vidas, e é graças a ela que podemos sair do nosso inicial estado de desamparo para, aos poucos, nos apropriarmos e dominarmos o mundo ao nosso redor. Na medida em que crescemos e nos vemos obrigados a lidar com as normas e exigências culturais, precisamos reprimir e lidar de uma forma diferente com essa agressividade para conseguirmos viver em sociedade. Os sentimentos tidos como mais nobres, como o amor, a compaixão e a generosidade, seriam construções secundárias derivadas desses instintos primitivos, em decorrência da repressão imposta pela cultura, que se faz tão essencial para que possamos nos relacionar uns com os outros. 

É certo que, nos dias de hoje, há diversas correntes teóricas defendidas por psiquiatras e psicólogos que pregam a possibilidade de uma suposta educação das emoções e instintos, o que levaria o indivíduo a alcançar uma harmonia idealizada. Entretanto, Freud e Iñarritu nos alertam para a impossibilidade dessa hipótese, já que somos essencialmente seres agressivos e que é necessário que tenhamos agressividade, pois do contrário não conseguiríamos sobreviver. A desarmonia gerada por esse eterno conflito entre os nossos instintos mais íntimos e a censura imposta pela vida em sociedade é o que nos torna quem somos. Negar tais instintos, tomando-os como algo ruim ou indigno de nós mesmos, além de não funcionar, não nos ajuda. Tampouco se trata de nos entregarmos a eles sem nenhum limite. O que a psicanálise nos ensina é como lidar com eles, admitindo sua existência ao invés de reprimi-los ou controla-los, afinal de contas são estes sentimentos que servem como força propulsora para construirmos nossas realizações no decorrer da vida.

O Regresso nos angustia tanto porque nos conduz a um regresso a nós mesmos, para o que há de mais íntimo e, muitas vezes, insuportável em cada um de nós. O que Hugh Glass nos ensina é que esses sentimentos são os que nos mantêm vivos. Deveríamos aprender com ele.


* Sra. Júlia Solano, psicóloga da Holiste.