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Entrevista

Ana Crícia Macedo, titular da Derca

Por Ana Cely Lopes

Ana Crícia Macedo, titular da Derca
Fotos: Ana Cely Lopes/ Bahia Notícias

Na semana do Dia das Crianças, um dado da Secretaria de Segurança Pública (SSP) chama a atenção: mais de 3.800 crianças e adolescentes sofreram violência no primeiro semestre de 2017. Apesar dos casos de ameaça, estupro, lesão dolosa e tentativa de homicídio terem diminuído em cerca de 20% em relação ao primeiro semestre de 2016, o que pode estar acontecendo é uma ocultação de crimes, já que a violência geralmente ocorre no âmbito familiar. “É um desafio fazer a sociedade compreender que os casos devem ser denunciados mesmo quando é um parente. Isso não pode ser mantido em sigilo porque o criminoso é capaz de cometer atos similares com outras crianças”, explicou Ana Crícia Macedo, titular da Delegacia Especializada de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Derca). Na unidade, o tratamento é direcionado a menores de 18 anos e a abordagem é diferenciada dependendo da idade. “A narrativa vem livre e temos que colher o máximo possível de informações. Muitas vezes é a única prova que a gente tem desse delito, já que os casos geralmente ocorrem entre quatro paredes”, disse Ana Crícia. Na entrevista, o Bahia Notícias conversou sobre os principais tipos de violência, a relação com a cultura do castigo físico e a obediência aos mais velhos, além de formas de prevenção e em como denunciar. Quando se trata de aspectos positivos, a delegada de 45 anos diz que trabalha na Derca há mais de 15 anos e testemunhou não só casos de abuso sexual, espancamentos e óbitos, mas também de mudanças positivas na lei e de aumento nas denúncias. “A própria sociedade mudou. Haviam condutas que não tinham previsão na lei como crime e que hoje, possuem leis específicas que apontam o ato como criminoso. Acho que hoje a sociedade está mais esclarecida para essas violências, temos mais denúncias”, afirmou. Confira a entrevista completa:


Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), a violência na Bahia contra a criança e o adolescente diminuiu do primeiro semestre de 2016 em relação ao primeiro semestre de 2017. Você consegue detectar alguma ação ou campanha diferente que ocorreu nesse período? 

Não posso afirmar nada com certeza já que não foram realizadas pesquisas para detectar o motivo exato. Realmente tivemos uma diminuição e pode ter sido por conta das campanhas, atividades de repressão, divulgação. A sociedade pode estar se educando perante a esse tipo de violência, mas, o que pode estar ocorrendo também é uma ocultação. Por conta da peculiaridade desse tipo de crime, a violência geralmente ocorre dentro de casa, do ambiente familiar.  

Como funciona a Derca e como vocês realizam o atendimento de uma criança violentada?
A delegacia só atende crianças e adolescentes menores de 18 anos. Considerando o grande leque de violências físicas, domésticas, psicológicas e sexuais, o papel da delegacia é buscar a punição dessa pessoa que cometeu a ação criminosa. Por meio do inquérito policial, buscamos apontar a autoria e responsabilizar o indivíduo. Quando chega um indivíduo a ser atendido, a abordagem é diferente dependendo da idade. Temos que deixar a criança ter livre narrativa para contar o fato e, para isso, ela precisa entender a importância de contar. Dependendo da idade a criança não faz ideia de que está em uma delegacia de polícia, afinal, temos uma estrutura com brinquedos e um acolhimento cuidadoso. A narrativa vem livre e temos que colher o máximo possível de informações. Muitas vezes é a única prova que a gente tem desse delito, já que os casos geralmente ocorrem entre quatro paredes. Essa violência não acontece no meio de muita gente, ocorre em um local mais secreto.

Quais são as violências mais recorrentes? 
Temos um grande número de ocorrências doméstica, crimes praticados dentro do âmbito familiar pelas mães, avós, pais, tios, tias etc. Temos também dados relevantes de abuso sexual, que é qualquer ato sexual com a criança ou adolescente. Quando se trata de violência sexual, a amplitude das consequências é inenarrável e traz sofrimento físico e psicológico que, se não tratado, pode repercutir durante toda vida do indivíduo. Nesses casos, a gente tem o Projeto Viver, do governo do Estado, como grande parceiro para acompanhar as vítimas. O programa tem equipe multidisciplinar com psicólogos e assistentes sociais que realizam o tratamento durante o tempo que for necessário. 


Pensando que existe uma cultura enraizada da educação por meio da agressão e do forçar a trabalhar, você acha que é importante existirem mais Dercas no interior do estado? 
Acho sempre importante ter delegacia especializada porque o atendimento é diferenciado, tem mais celeridade na questão do trâmite da investigação e é exclusiva para criança e para o adolescente. Acho que é necessário sim. De fato, a gente tem uma cultura de educação baseada no castigo e na agressão física. Essa cultura precisa ser modificada porque ocorre de forma exacerbada. Aqui a gente constata violência física de grandes proporções, como pessoas que esquentam a colher no fogão e queimam a língua de crianças porque elas xingaram. Existem casos de espancamentos e óbitos. Temos que mudar essa forma de educar, essa cultura que a gente tem de educação com castigo físico. Devemos buscar o diálogo, existem outras formas de reprimir, educar e corrigir os filhos. Você pode, por exemplo, tirar dele um passeio que ele quer fazer, televisão, videogame, é importante dar limite sim, ninguém diz o contrário. Agora não com base na violência física. 

Você trabalha há 15 anos na Derca. Há mudanças no paradigma das violências? Qual a maior dificuldade de realizar esse atendimento atualmente?
Sempre foi uma área de muito sofrimento, que ocorre dentro do contexto familiar. É difícil porque a criança muitas vezes passa não só pelo sofrimento da violência em si, mas também pelo conflito de ter que falar contra a mãe dela, o pai ou uma pessoa da convivência dela. São casos difíceis de investigar e sentimos que muitas vezes é uma violência que chega à delegacia em número menor do que realmente acontece. Nos preocupamos se os pais estão reprimindo. Sobre as diferenças, a própria sociedade mudou dentro desses 15 anos e haviam condutas que não tinham previsão na lei como crime, eram lacunas, e que hoje, existem leis específicas que apontam o ato como criminoso. Acho que hoje a sociedade está mais esclarecida para essas violências, temos mais denúncias.


Existe alguma forma de prevenção a essas violências?
Quando se trata de violência física, a família tem que ter consciência e mudar a cultura da agressão. Já quando se trata da violência sexual podemos orientar a criança desde cedo que existem partes do corpo que não devem ser tocadas, como as partes íntimas. Além disso, devemos manter uma relação de confiança com a criança para que ela não tenha medo de contar que aconteceu alguma coisa. A gente percebe que quando tomamos conhecimento de uma violência sexual a criança já passou por várias experiências dessa natureza, depois de muito tempo que ela vinha contar. Quando indagamos por qual motivo ela não contou antes muitas vezes a gente constata que ela tinha medo ou vergonha de contar para mãe. As relações não são de total confiança. Temos que tomar cuidado também com a questão da obediência aos mais velhos, já que falamos muito para os filhos “você tem que obedecer aos mais velhos” e muitas vezes as crianças e jovens são submissas as pessoas mais velhas por conta de uma recomendação dos pais. Temos que orientar que não é para tudo, quando se referir as partes íntimas temos que dizer não e contar imediatamente para mãe ou pai. 

O que pode melhorar em relação ao trabalho na Derca?
Em relação a parte técnica, gostaríamos de ampliar o atendimento e criar talvez uma outra delegacia em Salvador e outras unidades em cidades do estado que tiverem grande população. O grande desafio é fazer a sociedade compreender esse tipo de violência e entender que os casos devem ser denunciados mesmo quando é um parente. Isso não pode ser mantido em sigilo porque o criminoso é capaz de cometer atos similares com outras crianças. Não é algo para se resolver em casa. As crianças dependem de alguém que falem elas e sozinhas não tem como se defender. É importante que as pessoas tenham consciência disso. 

Como fazer para denunciar se você testemunhou violência contra esse público?
Se o fato estiver ocorrendo dá para ligar para o 190, que é o número de emergência onde você solicita a viatura mais próxima. Em casos de violência contra criança e adolescente a situação deve vir a conhecimento da Derca para existir a possibilidade de prisão em flagrante.