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Entrevista

Juíza Ana Barbuda - Casamento gay na Bahia

Por Niassa Jamena

Juíza Ana Barbuda - Casamento gay na Bahia
Foto: Tiago Melo / Bahia Notícias
“A falta de sanidade é que faz com que a gente crie tantos preconceitos”. Dessa forma, a juíza corregedora Ana Barbuda Ferreira justifica as suas afirmações sobre todos os aspectos que envolvem o casamento homoafetivo. Assessora especial da Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia, órgão que tomou a decisão de legalizar o casamento civil homoafetivo no estado, a magistrada conversou com o Bahia Notícias sobre o tema. Ao destacar os aspectos subjetivos que envolvem a oficialização de relações homossexuais, Ana Barbuda mostra como a lei para além do seu aspecto jurídico, precisa considerar aquilo que a sociedade necessita dentro das suas mais diversas expressões. “O maior impacto dessa decisão é a capacidade de aprender a tolerar”, ponderou.
 

 
Bahia Notícias – Antes os casais homossexuais só tinham oficialmente o direito de se unir em união estável.  Quais são as mudanças efetivas entre uma união estável e o casamento?
 
Ana Barbuda – A diferença não é substancial. Há uma diferença que garante aquilo que eu quero constituir. Eu posso continuar me unindo a outra pessoa, com os mesmos procedimentos, com menos exigências, afastando interesses...  Entretanto, quando se parte para um casamento, se constitui uma unidade familiar com outra intenção. Eu conheço duas pessoas que convivem juntas e são considerados marido e mulher, mas não há o ato formal. O casamento é uma instituição formal. Um instituto jurídico. Portanto, agora há a possibilidade de ele ser constituído com os procedimentos legais, com seus proclamas...  Há uma nova forma de se entender o que é a família, e ver que ela também implica nesse elo da afetividade, no por que eu estou me unido a outro. Não importa a minha orientação sexual, e sim o que eu desejo formatar ali.
 
BN – A senhora acredita que, para o judiciário, está mais fácil conceber esses novos tipos de família?
 
AB – Não é questão de ser mais fácil. Eu acho que o judiciário está aberto a atender o clamor das pessoas. Há um desejo de entender, de ouvir e de compreender os reclames de cada um. Eu penso que o judiciário atual é aquele que tolera ouvir as diversas expressões, compreendendo e se colocando no lugar do outro para salvaguardar a identidade de cada um. Nós não vamos ser nada se nós não pudermos garantir o que cada um é.
 
BN – O casamento homoafetivo é um tema ainda muito controverso. Como foi o amadurecimento dessa ideia de legalizar o casamento homossexual dentro da Justiça Baiana?
 
AB – Isso já vem de longas datas, não só do judiciário baiano, mas, na concepção de todos os doutrinadores do direito. Eu acho que essa ideia acompanha a própria evolução da sociedade, a capacidade de entender que há diferenças e que essas diferenças devem ser respeitadas. 
 

 
BN – A senhora acredita que as decisões isoladas de juízes em todo o país, favoráveis a essas uniões teriam estimulado essa decisão aqui na Bahia?
 
AB – Demais. Essas decisões anteriores foram fortalecendo essa nova compreensão e essa elasticidade, benéfica na minha visão, desse novo conceito de família. Essa viabilidade jurídica no casamento homoafetivo na Bahia traz um alento no coração dessas pessoas. É um remédio passar a ser enxergado na sua autenticidade sem precisar esconder aquilo que é ou porque é. Temos que valorizar a identidade de cada um, procurando desenvolver virtudes. Essa decisão ela é acima de tudo a possibilidade de eu vivenciar valores no mais profundo entendimento. Hoje em dia não é preciso se preocupar com as condutas moralmente exigidas, é necessário descobrir aquele que está ao meu lado. Com a devida comparação, você olha a luta dos negros para dizer: eu tenho voz eu tenho vez. A cor da minha pele diz acima de tudo que eu sou um ser humano. Será que então a minha opção sexual vai me deixar alheio da sociedade, vai me excluir dela? O importante é descobrir quem são as pessoas, o que elas representam para a construção de um mundo melhor, para a construção de uma sociedade mais humana, fraterna. 
 
BN – Em sua opinião qual foi o impacto que a legalização teve sobre a sociedade baiana?
 
AB – O maior impacto que essa decisão teve é a capacidade de aprender a tolerar. Eu falo tolerar como princípio jurídico, mas também no sentido humano. A capacidade de entender que nem todos podem ser exatamente aquilo que eu quero, desejo ou acredito. 
 
BN – A senhora acredita que a sacralização que a palavra casamento carrega em várias religiões é um dos grandes entraves a aceitação desse tipo de união pela sociedade?
 
AB – Cada religião tem seus dogmas, e eu falo aqui de forma geral não de uma religião específica. Se você tem uma crença que viola aquilo que você é, não é preciso necessariamente deixá-la, você pode continuar convivendo naquele meio, esperando que aquela força em Deus te faça compreender seu modo de vida de uma forma diferente. Eu vou falar da religião que eu professo. Eu sou católica. Para a religião cristã o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria possível? Não, seria uma violação. Isso não quer dizer, entretanto, que o catolicismo não tenha respeito, ou não deseje abençoar, o que eu acredito, aqueles que são homossexuais. Eu posso dizer juridicamente que algo de sagrado uniu aquelas duas mulheres ou aqueles dois homens. Agora como isso vai se refletir na opção dele como religioso pertencente a uma agremiação, vai depender muito do que ele entenda como fundamento da sua fé.
 

 
BN – Recentemente houve protesto da comunidade gay de Salvador contra a concessão do título de cidadão soteropolitano ao pastor Silas Malafaia, conhecido por seus comentários ofensivos aos homossexuais. A senhora considera que a bancada evangélica impede debates mais abertos e despidos de preconceitos sobre a temática homossexual dentro do judiciário e até mesmo do legislativo?
 
AB – Não vou dizer que não. Eles carregam mesmo essa ideia de que um casamento homossexual não existe. Agora isso não dá o direito a qualquer igreja a dizer que a união entre dois homens ou duas mulheres é algo maldito. Pode ser algo que não se adeque aos seus dogmas, seus ditames, a sua compreensão. Algumas dessas igrejas podem dizer que não ama ou não aprova o que é homossexual?  Não pode. Nenhuma delas detém o amor e a misericórdia de Deus. Até a religião católica diz que todos os homossexuais devem ser respeitados e ser convocados a participarem como comunidade nas suas igrejas e paróquias. Aí você me diz: mas, eles imputam uma norma de vida ao homossexual. Aí eu te digo que essa norma de vida é algo que você só adquire se você tiver fé. Ninguém é obrigado a fazer. É uma escolha própria. Dessa forma, você se submete a aquela escolha sem violar a sua identidade. Ninguém deixa de ser homossexual.  
 
BN – Desde a aprovação da união estável homoafetiva pelo STF os casais gays podem, por lei, adotar crianças. Entretanto, a senhora acredita que na prática esse processo ainda seja muito mais difícil para os homossexuais do que para os heterossexuais?
 
AB – Eu acho que os preconceitos vão sendo quebrados. Se a lei abre as coisas vão se tornando muito naturais. Todo direito ele só é consolidado pela luta.  A gente vai se dando conta a cada dia que na diferença nós somos capazes de ter uma unidade. É fácil para um casal homossexual adotar uma criança? Eu não acho que seja fácil, mas, eu acho que os casos reiterados de adoção a medida que vão se solidificando vai trazendo essa visão de que onde há  amor tudo que está ali é fruto do amor. Parece difícil a gente falar de legal, de justiça com algo que é tão pouco palpável como o amor. Mas não se faz justiça pensando somente na parte jurídica, há outros valores subjetivos a serem garantidos. É possível que um casal adote uma criança e ela seja criada em um ambiente familiar? É. A falta de sanidade é que faz com que a gente crie tantos preconceitos. 
 
BN – Dois dos três estados que já legalizaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo não estão nas regiões centrais e mais desenvolvidas do país, que são a Bahia e Alagoas. Apenas São Paulo se enquadra nesse perfil. Porque especificamente neste tema mesmo as regiões que tradicionalmente estão na vanguarda das decisões do país ainda tem dificuldade de tomar decisões como essa?
 
BN – Eu acredito que o número de bancadas que existem, principalmente no Legislativo, ainda fazem uma barreira muito forte contra isso. Eu vejo que quanto maiores as bancadas, mais vezes as coisas não são bem interpretadas. Existem interesses difíceis de serem contornados. Não imagine que para Bahia, para suas corregedorias, para o próprio tribunal, chegar a essa conclusão de que é viável um casamento homoafetivo é tão fácil assim não. Nós também somos questionados.
 

 
BN – Até porque o judiciário ainda é um setor bastante conservador da sociedade...
 
AB – Eu digo que ele ainda é visto como conservador. Mas eu não sei se essa é a melhor palavra. Talvez o judiciário seja uma instituição que preze muito pela segurança. Entretanto, as grandes inovações partiram do judiciário, partiram das suas interpretações. Ele é sempre o último a falar, e, justamente por isso ele se dá o direito de rever todos os equívocos  e revelar valores para a construção de uma sociedade melhor. Acredito também que é o único poder que não tem um grande lobby. Em campanha todo mundo quer dizer que votou “nisso” que não votou “naquilo”. Seja executivo, legislativo... Muitas vezes montando lobbies inexistentes. A gente não pode montar lobbies. Ou o judiciário entende a sociedade em que ele está vivendo ou ele sempre vai fazer maus julgamentos e nada pode subsistir a injustiça. Nada impera na injustiça, mais cedo ou mais tarde ela cai.