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Entrevista

Decisão do STF sobre execução de pena é positiva, mas é inconstitucional, diz procurador

Por Júlia Vigné

Decisão do STF sobre execução de pena é positiva, mas é inconstitucional, diz procurador
Foto: Divulgação

O procurador da República e ex-Defensor Público Federal, João Paulo Lordelo, possui um posicionamento “intermediário” em relação à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na última quarta-feira (5), sobre a possibilidade de decreto de prisão com decisões de segundo grau. O procurador considera a decisão inconstitucional por ir contra ao artigo V da Constituição Federal que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e, ao mesmo tempo, considera que a execução da pena a partir do segundo grau é algo positivo, democrático, sendo um caminho adotado em diversos países.  Para Lordelo, no entanto, a implantação da prisão após decisão da segunda instância deveria ser feita a partir de uma emenda constitucional. “A Corte se utilizou de um ativismo judicial para fazer algo com uma boa intenção. Mas acho que o caminho adequado para a implantação seria uma emenda constitucional”, explicou Lordelo. O procurador avaliou o impacto da decisão ao sistema carcerário brasileiro, afirmando que a decisão só deve impactar os grandes empresários e corruptos e que não irá aumentar significativamente a população carcerária atual.

Qual é a sua opinião sobre a possibilidade de decreto de prisão com decisões de segundo grau?
Eu considero a execução da pena a partir do segundo grau como algo positivo. Me parece que é algo democrático, um caminho adotado em diversos países, é algo que está em sintonia com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ou seja, não é nada absurdo. Tal fato existe, na maioria das vezes, como regra nos países democráticos, não viola a ampla defesa, não viola o contraditório, pelo contrário. Quando o acusado é condenado em segundo grau, ele já passou por duas instâncias. Na maioria dos países, só há duas instâncias, inclusive. Já no Brasil, nós temos um sistema recursal muito esquisito em que qualquer pessoa tem acesso a primeiro grau, segundo, terceiro grau e pode se aventurar ainda em um quarto grau, que é o STF. Isso gera uma farra recursal que causa impunidade, em especial nos crimes praticados por pessoas mais ricas, por políticos e por organizações criminosas muito bem estruturadas e financiadas. Então há uma espécie de aristocracia dentro do processo penal. A decisão, dessa forma, está em sintonia com os direitos humanos. Já em relação à constitucionalidade da questão, a nossa Constituição Federal tem uma redação bem clara no artigo V dispondo que ninguém será considerado culpado senão após o trânsito em julgado. E a legislação define a coisa em julgado, que é o trânsito em julgado, como a decisão que não cabe mais recurso. Existe essa barreira interpretativa expressa, literal, que foi ultrapassada pelo Supremo. A Corte se utilizou de um ativismo judicial para fazer algo com uma boa intenção.

Qual seria a “solução” para essa situação, então?
Acho que o caminho adequado seria uma emenda constitucional. O caminho mais adequado seria reformar a Constituição, reformar o sistema penal recursal, que é extremamente mal feito, irracional, desorganizado e favorece a impunidade daquelas pessoas que têm recursos para pagar grandes advogados. Com o disposto no artigo V, o entendimento é que não existe a culpa provisória no processo penal. Somente haverá a presunção de culpa com o trânsito em julgado. É muito importante que o Congresso Nacional aprecie as propostas encaminhadas pelas campanhas realizadas pelo Ministério Público Federal (MPF), que contaram com o apoio popular, que contaram com a questão da execução provisória da pena. É necessário que o congresso analise até para afastar argumentos relativos à legitimidade do Supremo para abordar o tema.

Qual é a diferença de prisão provisória e preventiva da prisão antes do trânsito em julgado?
Quando uma pessoa é presa provisoriamente ou preventivamente, isso é feito de forma cautelar, quando há indícios e elementos que apontam para uma possível repetição de crime ou ocultação de provas. Portanto, há uma motivação específica baseada em outros fatos para a proteção da sociedade. A situação agora é de uma prisão automática, sem que haja essa situação de cautelaridade, de proteção da sociedade com base em um argumento concreto. O que isso gera é uma prisão sem a configuração da culpa e sem um motivo cautelar. Há um entendimento clássico no direito penal de que não há pena sem culpa, e a Constituição só diz que há culpa com o trânsito em julgado. Então não vejo como possível essa prisão motivada pelo mero fato de o réu ter sido condenado em segundo grau.

Qual é o impacto da decisão na população carcerária brasileira?
Existe muito terrorismo dentro da comunidade jurídica sobre os impactos dessas decisões. Sobretudo pressão sobre as pessoas mais pobres em um país marcado sobre o encarceramento em massa. O encarceramento em massa no Brasil está ligado a um fator muito diferente da decisão proferida pelo STF, que é a política de drogas. Hoje, no Brasil, existe um encarceramento exagerado por conta da guerra contra o narcotráfico, que é o modelo que o Brasil resolveu adotar e que o mundo todo está mudando. Esse é o principal fator que leva ao encarceramento em massa e que não tem nada a ver com isso aqui. Existem estudos sérios. Existe um estudo recente do FGV [Fundação Getúlio Vargas] que mostra que o impacto da decisão do STF no encarceramento em massa será muito pequeno. Muito provavelmente esse entendimento recairá especificamente em uma parcela pequena do processo penal, que serão as pessoas responsáveis por crimes muito específicos, como crimes de corrupção, crimes ambientais, organizações criminosas, lavagem de dinheiro. São agentes que cometem determinados delitos e que se valem de diversos recursos protelatórios com o objetivo específico de conseguir a prescrição.

Qual seria a solução para a questão da influência da criminalização das drogas e a influência na população carcerária?
Me parece bem claro que, no Brasil, o encarceramento em massa decorre de uma política de combate às drogas fracassada, ineficiente, chamada de "guerra contra o tráfico", que muitas vezes em vez de combater a violência, acaba fazendo o efeito contrário e gera muito mais violência. Muitos países já perceberam isso e estão flexibilizando a legislação de combates às drogas, percebendo que o caminho da criminalização deve ser repensado, pelo menos sendo flexibilizado em alguns aspectos, seja por questões pragmáticas, ou seja por questões ideológicas. No Brasil existem muitas pessoas que estão encarceradas, muitos deles são presos provisórios, ou seja, que aguardam o julgamento definitivo, em razão do tráfico ou do uso de pequenas quantidades de drogas. Essas pessoas são os "maiores fregueses" do sistema carcerário. E é preciso que a sociedade civil, a comunidade política e jurídica pare e discuta e debata se é esse o caminho que queremos, porque esse encarceramento gera gastos desnecessários. A política de combate às drogas gera, sobretudo - e esse é o principal problema - uma intervenção direta na liberdade individual das pessoas. Obviamente que a política de combate às drogas no Brasil decorre de um posicionamento paternalista e densamente interventor na liberdade individual. É preciso saber qual é o limite da escolha de cada um àquilo que faz mal apenas a si mesmo. E transportar esse debate para o campo da saúde pública e tirando do campo da segurança pública. Apenas a título de exemplo, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, ganhou notoriedade na mídia em relação ao posicionamento dele a favor de descriminalização de algumas drogas. Diversos países já descriminalizaram a maconha, por exemplo. Esse é um debate que precisa ser realizado no Brasil com grupos representativos de todos os setores da sociedade civil, com um pano de fundo jurídico, obviamente. É preciso discutir com base na Constituição, o que inclui a saúde pública e a liberdade individual.  

A que ponto as drogas são “supervalorizadas” em relação criminal na legislação brasileira?
Se pararmos para pensar hoje o tráfico de pequenas quantidades de determinadas drogas, como a maconha, é tratado pela nossa legislação de forma muito mais dura do que alguns crimes ambientais. Então imagine a pessoa destruir o meio ambiente, causar um dano agressivo e às vezes irreversível ao meio ambiente e muitas das vezes é apenado com uma punição mais baixa do que uma pessoa que vende determinada droga para uma outra pessoa. Existe um leque imenso de drogas e cada uma merece uma análise particular. Mas é importante constatar que o tratamento dado à política de drogas é muito mais duro e afeta apenas pessoas restritas que são afetadas com o uso da droga. Em relação ao meio ambiente a situação é totalmente contrária. A lesão ao meio ambiente passa por gerações de pessoas e recebe um tratamento mais leve pela nossa legislação. É preciso repensar isso.

O sistema penal não é justo, então?
O contexto atual revela que há no nosso país dois mundos totalmente apartados no que diz respeito ao processo penal. De um lado os criminosos de colarinho branco, naturalmente que praticam crimes como crimes ambientais ou corrupção são raramente punidos e quando são punidos raramente são submetidos à pena privativa de liberdade, ou seja, prisão, que faz com que eles incrementem esse baixo risco de punição como estímulo à sua conduta. De outro lado nós temos pessoas que respondem por crimes como os previstos na lei de drogas que muitas vezes são pessoas que são moradores de comunidades carentes, que são vítimas as vezes de abusos policiais, de flagrantes criados, de invasões domiciliares por autoridades policiais sem mandado. Há dois mundos diferentes. E o Ministério Público (MP) como órgão de fiscalização e de equilíbrio, que se volta à proteção dos direitos fundamentais, deve perceber isso e tentar transformar o sistema penal em um sistema mais justo. Não no sentido de universalizar o abuso, pelo contrário, mas no sentido de fazer com que o sistema penal seja mais racional. Aí a gente precisa entender que o direito penal existe para proteger direitos fundamentais.

E de que forma a decisão do STF afeta a advocacia?
É claro que essa decisão vai afetar muito o perfil da advocacia brasileira, que terá que se adaptar e passar a trabalhar mais com os fatos do processo penal e menos com o tempo do processo. Muitas vezes tentar uma prescrição, tentar atrasar o processo é uma tática de defesa. E as vezes é a maior tática de bancas de advocacia. Então essa postura muito provavelmente sofrerá um grande impacto e possivelmente mudará o perfil da advocacia criminalística brasileira.

Qual será o posicionamento do Ministério Público a partir de agora?
Precisamos entender que o mérito da questão em si ainda não foi resolvido, foi um julgamento em relação às medidas liminares impetradas no STF. Mas é óbvio que o Supremo já deixou claro seu posicionamento para a sociedade. Apesar de não ter partido para o exame do mérito da questão, a Corte certamente irá se manifestar de maneira definitiva quando retornar o caso. O caminho natural que o MP deve seguir é pedir a execução da pena a partir do acórdão em segundo grau. O caminho tradicional é o de respeito ao entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal.