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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Diretor da Lemos Brito diz que menor em presídio estará na mão de lideranças negativas

Por Cláudia Cardozo/ Bruno Luiz

Diretor da Lemos Brito diz que menor em presídio estará na mão de lideranças negativas
Fotos: Jamile Amine | Bahia Noticias

O diretor da penitenciária Lemos Brito, Everaldo Carvalho, concedeu uma entrevista ao Bahia Notícias para falar sobre o Sistema Penitenciário na Bahia, a realidade da penitenciária que dirige e os programas desenvolvidos para ressocialização dos presidiários. Everaldo, que é agente penitenciário há mais de 25 anos e é sociólogo, defende um maior investimento em agentes penitenciários, tanto para aumentar o efetivo, quanto para qualificá-los, a fim de garantir que os detentos possam ser ressocializados na sociedade ao final do cumprimento de uma pena. “Nenhum projeto de humanização vai acontecer sem a mediação do agente penitenciário. Ele é a mola-mestra que põe a unidade em funcionamento. Precisamos ter quantidade suficiente, capacitação ideal, compreendendo a complexidade da pena na contemporaneidade, e arquitetura favorável, para que possamos separar os presos por perfil delituoso”, afirmou. A Lemos Brito atualmente abriga 1390 presos, com uma superlotação carcerária. Construída ainda na década de 1950, a unidade só tem capacidade para abrigar 771 sentenciados e abraçar 101 comarcas do interior da Bahia. Para o diretor da Lemos Brito é preciso “acelerar o projeto de interiorização das penitenciárias, para que o indivíduo possa cumprir a pena perto de sua localidade, de sua família”. Na penitenciária, localizada no bairro da Mata Escura, o diretor busca desenvolver projetos que possam garantir que o condenado tenha acesso à educação, saúde, assistência jurídica e “todo o pacote de assistência que a lei de execução penal prevê”. Sobre a polêmica discussão sobre a redução da maioridade penal, Carvalho pensa que reduzir a idade não é a melhor solução: 'acredito que colocar um menor de 18 anos dentro de um presídio tradicional é colocá-lo na mão das chamadas lideranças negativas. Acredito que a solução é ampliar o tempo de internação do menor infrator, conforme o que já é aplicado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e estabelecer uma série de controles nas unidades específicas para eles. A solução não é trazer os jovens para esse sistema que têm muitos problemas para serem corrigidos. Isso é trazer mais um problema e fazer com que sejam seduzidos mais rapidamente pela lógica da criminalidade", afirmou. Confira a entrevista na integra na coluna Justiça.



Primeiramente, o senhor poderia falar um pouco sobre a população carcerária na Lemos de Brito? Quais são os programas desenvolvidos na penitenciária para ressocializá-los?
A penitenciária hoje tem uma capacidade numérica para 771 sentenciados. Hoje, nós abrigamos 1390. A penitenciária representa, historicamente, a execução penal para 101 comarcas no interior. Precisamos acelerar o projeto de interiorização das penitenciárias, para que o indivíduo possa cumprir a pena perto de sua localidade, de sua família. Enquanto essa não chega, a penitenciária tem essa função de atender as comarcas de todo o estado. Uma vez lá, os sentenciados que têm pena igual ou superior a oito anos, que cometeram crimes hediondos ou correlatos, ou reincidentes. Mesmo com pena inferior a oito anos, começam a cumprir pena com a gente. Nossa função é pegar o encarcerado para cumprir o que o juiz determina, de mantê-lo até ulterior decisão judicial. Num segundo momento, vamos trabalhar o indivíduo para que ele tenha acesso à educação, saúde, assistência jurídica e todo o pacote de assistência que a lei de execução penal prevê. Temos programa para tudo isso. Nós contamos com parcerias para que isso aconteça. Temos empresas que utilizam a mão de obra do encarcerado, pagando a eles, em troca, até quatro salários mínimos. Ele é remunerado e ganha remição da pena. Temos programas de educação, a penitenciária ganhou um prêmio de educação nacional nas prisões. Mas nem tudo é fácil por causa da arquitetura da penitenciária. Ela ainda é tradicional. Esperamos conseguir uma reforma no local, para melhorar a reinserção social desse indivíduo carcerário.

Quantos desses presos são provisórios e quantos são sentenciados? Qual a média?
Em relação a presos provisórios temos um problema de Estado. A média nacional de presos provisórios nacionais é de 40 a 45%. Na Bahia, essa média cresce muito, passa para 60%. É um problema grave. Na penitenciária, não temos presos provisórios. Eles são efetivamente julgados. O que temos são presos que recorreram de sua condenação, mas, por serem réus presos, precisam aguardar o resultado do recurso presos. Todos, tecnicamente, são condenados e participam do processo de ressocialização.

Como o senhor tem lidado com a questão da superlotação? Como a penitenciária administra isto?
A penitenciária hoje tem quatro módulos prisionais. O nosso maior módulo é o cinco, que abriga 547 internos, mais ou menos. E temos mais outros. O módulo quatro, o módulo um e o módulo dois abrigam 300 presos em cada, em média. Então, nós tentamos colocar perfis de acordo com esses módulos. Só que com a superlotação isto fica difícil. Mas, pelo menos, temos o módulo quatro, o primeiro módulo da penitenciária, que já esteve desativado, nós reativamos ele para todos os nossos internos que têm trabalho remunerado. Todos que participam de nossos programas, quer sejam da oficina de idosos, quer sejam do trabalho de manutenção da unidade, nós separamos. Nossos técnicos, psicólogos, assistentes sociais, coordenador educacional, coordenador de segurança, coordenador disciplinar, todos eles fazem uma análise dos internos, a partir de seu prontuário, de seu histórico, e ele se enquadrando no nosso processo de quer participar de nossos programas, nós retiramos ele do módulo ordinário, para colocá-lo no chamado módulo quatro, específico para presos que estão participando de nossas atividades.

Qual é a grande dificuldade hoje em dia no Brasil de fazer uma ressocialização, de recuperar um preso para que ele volte sem estigma para a sociedade?
Retirar o estigma é quase impossível. O que podemos e tentamos fazer é atenuar o peso do estigma sobre o encarcerado. Dentro do estabelecimento prisional, uma vez que ele adentre o cárcere, eles formam valores, subgrupos, formam regras estabelecidas. A nossa dificuldade é ter uma arquitetura que possa atenuar o peso desses grupos sobre outros encarcerados. Identificando as chamadas lideranças negativas, retirá-las de lá e colocá-las em uma unidade de segurança máxima, embora o senso comum pense que seja, mas é uma unidade de trabalho. A dificuldade que temos é uma arquitetura favorável para fazermos a separação dos presos por perfil delituoso, superlotação e número suficiente de agentes penitenciários. Precisamos de agentes em um quantitativo ideal, com uma formação específica para atender a duplicidade de atividades. Nenhum projeto de humanização vai acontecer sem a mediação do agente penitenciário. Ele é a mola-mestra que põe a unidade em funcionamento. Precisamos ter quantidade suficiente, capacitação ideal, compreendendo a complexidade da pena na contemporaneidade, e arquitetura favorável, para que possamos separar os presos por perfil delituoso.

O senhor acha que o Estado impede a manutenção desse sistema?
O Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. O Brasil tem mais de 550.000 pessoas atrás das grades. Existe um número crescente de presos que estão sob a tutela do Estado. O perfil desse preso é de que cometeu crime relacionado a crime contra o patrimônio, associado ao tráfico de drogas. O grande paradoxo é: o preso comete ou é condenado a um delito ligado ao tráfico de drogas, mas não consegue pagar um advogado. Precisa que a Defensoria Pública assista esse indivíduo. Há um problema aí que precisa ser entendido. O traficante, sim, mas ele não tem recurso para pagar um advogado? Será que ele é traficante mesmo ou é mais um operário dentro dessa engrenagem toda? Eu acho que a discussão precisa ser feita com os órgãos que operam a defesa social, como Defensoria, promotoria, juiz da execução penal, juiz processante, os programas que são realizados para que o indivíduo não cometa o crime e, finalmente, para aqueles que estão executando na ponta o sistema penitenciário. É um problema grave, há uma máquina do Estado produzindo esse processo todo.


O senhor acredita que o Estado precisa abarcar mais recursos para as penitenciárias no estado? Na Bahia, existem poucos presídios e uma grande população carcerária. No entanto, há outra discussão: é necessário que se construam mais presídios ou rever a nossa política de condenação no sistema prisional?
Você tem que ter políticas de prevenção ao cometimento do delito e políticas já de combate, de controle e administração. Temos um déficit em relação ao número de pessoas presas e a quantidade de vagas que destinamos para que o preso possa cumprir sua pena com dignidade. Se não tivermos condição de criar vagas eficientes, estamos perdendo espaço para as ditas lideranças negativas, que vão atuar nesse caos. É preciso a gente discutir com o Judiciário de que forma eles vão acelerar todo esse processo com os juízes, no que tange a apreciar os pedidos e os benefícios jurídicos desses encarcerados. No que tange progressão de regime, livramento condicional, no que tange indultos, a uma série de benefícios. Estamos falando de um sistema penal progressivo. A gente tem que discutir também: vamos criar mais escolas ou mais presídios? Esse um debate que temos que fazer em conjunto com a sociedade. O fato é que temos hoje presídios de má qualidade, tanto de segurança máxima como de trabalho. A discussão é: temos que criar mais presídios, mas com vocações - presídios específicos para trabalho e presídios para controlar as chamadas lideranças negativas.

Qual a experiência que a Lemos Brito tem observado com o trabalho dos internos? Quais os resultados obtidos, já um índice de ressocialização maior nos últimos anos?
Nós acreditamos que sim. Hoje, embora a unidade esteja acima de sua capacidade e que os espaços tradicionais tiveram pouca inovação ao longo desses 60 anos, vamos considerar que a penitenciária surgiu na década de 50, sendo a primeira criada na Bahia para execução penal. O que posso dizer é que temos números expressivos. Nunca tivemos tanto preso trabalhando como hoje na penitenciária. Hoje, temos sete empresas que, juntas, dão a 200 internos trabalho remunerado, temos escolas funcionando dentro dos módulos, que oferecem o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA) para nossos internos. Temos uma média de 27% dos nossos presidiários estudando dentro da unidade, embora haja evasão escolar, como há em todo lugar. Nós temos trabalho e cursos profissionalizantes na penitenciária, além de oficinas de mosaico, confecção de artesanato e móveis. O interno tem acesso nas oficinais à madeira para produzir os móveis. O interessante é que seus familiares vão visitá-lo e levam esses móveis para serem vendidos nas feiras da cidade. Note que há uma relação da penitenciária com o mundo externo. Há um mundo que o grande público não percebe. Às vezes, a mídia só mostra a parte ruim, a parte depreciável da penitenciária, mas ela tem uma função social histórica e nós tentamos vigorizar essa função.

O que se está se discutindo agora é a questão das audiências de custódia. Como essas audiências, que já funcionam na Bahia há algum tempo, podem melhor a situação dos presídios no estado?
Se a gente imaginar que o preso adentra a cadeia como presos provisório, aguardando deliberação judicial, depois do inquérito policial, eu acredito que os núcleos de prisão em flagrante irão apreciar com mais velocidade e agilidade se o flagrante de fato se sustenta, se a prisão terá que acontecer ou não, relaxar a prisão, considerar, de fato, o resultado do inquérito, e aí o número de presos específicos aguardando apreciação judicial pode diminuir bastante. Ou seja, o número de presos provisórios que existe hoje no estado pode diminuir se esta apreciação se der de forma mais ágil, se o Judiciário estiver mais presente para apreciar efetivamente esta prisão. E eu diria que as videoconferências, uma vez utilizadas, podem ajudar a atenuar esse inchaço. Uma audiência significa a articulação de uma parafernália de recursos, como Polícia Militar para fazer translado do preso. Precisamos de transporte, motorista, documentação e sintonizar o tempo dos operadores do direito com o tempo que essas viaturas saiam e peguem o trânsito na cidade para chegar no local no tempo estipulado. Ora, as videoconferências poderão acelerar, agilizar e diminuir a burocracia, o peso do Estado para fazer valer esse processo de audiências.

Outra questão muito discutida é a da redução da maioridade penal. O senhor acredita que essa medida trará impacto na população carcerária? É benéfico ou maléfico para a sociedade? O que jovens podem vivenciar nessas prisões?
É um tema complexo. A sociedade quer solução para a violência, pois ela é a que mais sofre diretamente com isso. Quando se discute formas de atenuá-la, a população quer ações que levem ao resultado final. Em relação à redução da maioridade, acredito que colocar um menor de 18 anos dentro de um presídio tradicional é colocá-lo na mão das chamadas lideranças negativas. Acredito que a solução é ampliar o tempo de internação do menor infrator, conforme o que já é aplicado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e estabelecer uma série de controles nas unidades específicas para eles. Estabelecer também uma relação mais imediata para que o juiz autorize efetivamente para que eles sofram as ações de medidas socioeducativas. Eu acho que a solução está na proposta que o Estatuto estabelece. Não é trazer os jovens para esse sistema que têm muitos problemas para serem corrigidos, muito trabalho para ser executado. Isso é trazer mais um problema e fazer com que sejam seduzidos mais rapidamente pela lógica da criminalidade.


Por que o senhor acha que a sociedade repudia tanto quando a gente fala que os presos têm direitos humanos?
Eu acho que a prisão mexe com a consciência coletiva do cidadão. Ela nasceu com essa proposta: estabelecer para o indivíduo comum que, se ele quebrar o contrato social, se ele cometer um ato ilícito, ele será punido, sofrerá. A ideia da penitenciária é de penitência, de sofrimento. O preso precisa se restabelecer com os ideais da moral e da convivência. A população que cumpre a regra da sociedade espera que os que não cumpram sejam punidos. Se a gente não souber fazer o debate qualitativo com a população, ela vai pensar que o indivíduo têm mais benefícios que ela não tem, pois o indivíduo passa por um processo de escuta do Estado, que dá a ele assistências que ela não consegue da forma que a sociedade estabelece para aqueles que estão sob sua tutela. Eu acho que é um debate que precisa ser feito com a sociedade, entendendo ela que, se não dermos a eles recursos e oportunidades para que os indivíduos não voltem a delinquir, eles sairão mais violentos do que entraram. Acho que precisamos educar a população, entendendo que, sim, eles são punidos porque perdem a liberdade. Dentro da unidade, eles sofrem com a ausência de suas famílias. E, mesmo assim, são seres humanos que precisam de uma chance. Acho que o debate precisa ser feito com a população. De fato, ela espera que eles sejam punidos, mas precisamos dizer a ela que não podemos fazer vingança e, sim, justiça. E justiça tem que mediar essas duas dimensões.

O senhor acredita que o trabalho na Lemos Brito pode evitar rebeliões, confrontos dentro das próprias celas, dos pavilhões?
Claro, claro. Nós tivemos problemas, no ano passado, de presos que tiveram acesso a materiais ilícitos e todos eles não estão mais na penitenciária. Foram punidos, remanejados para unidades de segurança máxima. E eles percebendo que aqueles que têm comportamento inadequado têm punição efetiva e aqueles que querem, de fato, apostar em um trabalho na educação, vão ter benefícios, terão a pena reduzida, o juiz vai apreciar seu pedido de progressão de regime com outros olhos. E isso tem acontecido numa relação muito boa com o Judiciário e com o trabalho da Defensoria que atua na unidade penitenciária. Isso tem ajudado a gente a ter uma unidade mais pacificada. Temos um longo caminho a percorrer nesse sentido, mas eu acredito que estamos sinalizando um caminho que é possível a gente trilhar e dar bons exemplos a sociedade e também ao próprio preso e aos familiares, que esperam que eles saiam de lá, mas não embrutecidos.

Há algum trabalho também junto aos agentes penitenciários para que agressões e torturas não sejam cometidas dentro da unidade?
Nós estamos fazendo um diálogo grande com o nosso secretário e nosso superintendente para a gente dinamizar a escola penitenciária. Hoje, o agente precisa, além de concurso público, do teste psicológico, do exame de aptidão física. Ele tem todo um curso feito para que possa se aprimorar nas duas ideias da punição: a ideia da punição e a da humanização. Agora, nós estamos catalogando essas disciplinas dentro de uma proposta de escola penitenciária. Uma escola exclusiva de formação do agente penitenciário, compreendendo a dinâmica de que a atividade não é ligada exclusivamente ao que faz a Polícia Militar e Polícia Civil, mas um misto entre as duas coisas. É preciso que a gente aposte nisso. Para trabalhar nessa, que é a segunda mais estressante profissão do mundo, ele deve passar por um processo de qualificação constante. Não só de formação inicial, como de requalificação ao longo do tempo, para que sempre esteja antenado às novidades.

Quais suas perspectivas para a sinalização de melhorias do sistema penitenciário brasileiro?
É uma atividade espinhosa a de dirigir uma unidade prisional, a mais emblemática da Bahia, com todos os problemas relacionados. Mas é gratificante quando você consegue trabalhar essa ideia de humanização dos presos, embora a sociedade ainda não entenda que o sentido nosso é de humanização dos presos. Eu acho que a gente ainda tem muito a falar e fazer sobre área. Em relação ao congresso, acho que é a chance que teremos de debate mais aprofundado. Acho que acadêmicos de direito, estudantes, a população e a grande imprensa ela vão de fato no congresso discutir esse tema que é fundamental para nós. Nós estamos do lado de cá das grades, nós estamos convivendo com um mundo mais complexo, com aumento crescente da violência. Precisamos passar a mensagem de que, dentro das grades, os funcionários estão gabaritados e estão com responsabilidade para tratar desse tema.