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Entrevista

Ricardo Chaves convoca artistas a repensarem o carnaval e diz que sempre sofreu preconceito

Por Fernanda Figueiredo

Ricardo Chaves convoca artistas a repensarem o carnaval e diz que sempre sofreu preconceito

"O que não pode acontecer sou eu, que estou no trio, me esquecer de quem está embaixo e parar na frente dos camarotes e ficar tocando para eles" 
 
Coluna Holofote: Em recente texto publicado em seu site, você disse que o carnaval de Salvador está carecendo de foco. Como assim?
Ricardo Chaves: O Carnaval de Salvador precisaria, no meu entender, mudar o foco. O foco existe. Mas assim, nos últimos anos, o Carnaval de Salvador vem passando por transformações – e isso é natural em todo empreendimento, na vida de todo mundo – mas ele vem tendo, cada vez mais espaços com críticas do que com coisas positivas na mídia, como um todo. Então, assim, o Carnaval de Salvador, quando ele ganhou o mundo, vamos dizer assim, ele também ganhou as críticas que vieram junto. Até aí tudo normal, faz parte. Ultimamente, quase que sempre, todo ano, aparecem as mesmas críticas ao Carnaval e a que tem vindo à tona é a questão do lucro com o Carnaval de Salvador que, no meu entender, é um foco errado pra nossa festa.
 
CH: Mas não é verdade?
RC: 
É. Existe muito artista ganhando muito dinheiro no carnaval, existe muito camarote cobrando caro. Eu, durante muito anos, ganhei muito dinheiro no Carnaval e eu acho que isso, numa sociedade capitalista, faz parte.
 
CH: Mas a crítica é principalmente acerca da segmentação do carnaval. Muitos camarotes e blocos em detrimento do folião pipoca, que tem cada vez menos espaço para brincar...
RC: Pronto. É isso que eu digo, a crítica maior tem sido essa: o folião está ficando de fora, em detrimento do dinheiro. No meu entender, o foco não é esse. O folião está ficando de fora e eu acho que nós, artistas, é que temos muito a ver com isso porque a gente inverteu um pouco a lógica da coisa. O Carnaval da Bahia só virou o que virou porque a gente tocava para o folião, para o povo. E povo, ainda demagogicamente falando, não é povo sem corda, não: é povo de bloco. E hoje não se toca mais para isso. Hoje se toca para camarote, para a mídia, você toca para onde tem câmera de televisão, onde tem o site mais importante, então, o carnaval mudou o foco. Nós que fazemos a festa não estamos mais preocupados em agradar quem nos acompanhava. A gente está fazendo a festa para ter espaço na mídia e isso é, no meu entender, um tiro no pé horroroso. Eu acho que o povo está sendo aleijado é do poder de decidir, é do poder de ouvir o que ele gosta sendo tocado, de sentir que a festa está sendo feita para ele e não para “eu vou convidar não sei quem para vir pro meu trio porque vai dar mídia”.
 

"Tem artistas que têm uma representatividade fundamental em tudo isso que está acontecendo hoje e que não podem ser tratados como, como... Nada"
 
CH: Você não acha que as participações especiais enriquecem a festa?
RC: Eu não sou contra os convites, maravilha. Mas eu acho que tem que ter uma lógica com a festa. Não dá para parar de fazer festa na rua pra fazer festa para um grupo que está no camarote ou um grupo que está em um stand de televisão, porque “aqui eu combinei que isso vai aparecer” e aparece, mas não necessariamente está colaborando com a festa. Isso é o que a gente sente na rua. A identidade com o povo, com a música que sai no trio elétrico está cada vez mais distante. Mas isso não são críticas, não. São constatações e eu estou largando para as pessoas pensarem.
 
CH: Mas você já se beneficiou do carnaval, já teve camarote, já teve música veiculada na rádio atendendo a toda essa lógica. Até que ponto está errado isso e onde começou o erro?
RC: Eu acho o camarote necessário. Me beneficiei, sim e é por isso que eu estou fazendo a mea culpa e chamando a responsabilidade para os artistas. Existem coisas que não mudam. Isso é uma tendência de mercado. A relação artista X rádio é uma realidade. Não dá mais pra gente ficar saudosista achando que um programador de rádio – que nem existe mais em rádio nenhuma a figura do programador, o que existe é a figura do cara que recebe o comercial e diz “esse pode tocar, esse não pode” -, então isso é a realidade, não é uma crítica.
 
CH: Que solução você propõe para isso então?
RC: Como é que a gente sai disso? Voltando o foco para o público. Eu não vou sentar aqui para compor uma música imaginando que eu vou fazer uma coreografiazinha, que o público vai fazer “nhênhênhênhanhanha”, não. As coreografias sempre existiram na música, mas elas vinham de lá pra cá, certo? Era uma coisa mais ou menos natural. Hoje, não. Hoje o povo senta e, ta na moda dizer “#partiu não sei o quê”, por causa da internet, então vamos sentar e fazer uma música com isso porque está na internet. Um fato que vira notícia, vira música. A menina voltou do Canadá e já tem uma música “Luíza voltou do Canadá”. Isso, sabe... Isso não tem consistência musical. Você, daqui a dois anos, você não vai se lembrar. Eu, por exemplo, não me lembro do que eu toquei no carnaval do ano passado. 
 
CH: E os camarotes
RC:  sempre foi assim. Camarotes sempre existiram, sempre. Desde o primeiro ano do carnaval, em 1982, já era assim, gente.
 
CH: Mas não tinha a quantidade de camarotes que tem hoje não.
RC: Mas só tinha prédio. Na Avenida Sete é prédio de um lado e prédio do outro. Então, vamos esquecer esse lado do comércio e pensar em como era desde o início. Era prédio de um lado, prédio do outro, janelas alugadas, marquises alugadas, corda, povo. Era assim que funcionava o carnaval, sempre foi assim. Então, esse conflito faz parte do Carnaval de Salvador, desde os anos 80. O que não pode acontecer sou eu, que estou no trio, me esquecer de quem está embaixo e parar na frente destes - onde mais de 20, 30% deles não estão nem aí pro que está acontecendo na rua – e ficar fazendo festa para eles. Isso que no carnaval do ano passado chegou, no meu entender, ao limite do absurdo. Passarelas, artistas que vão para dentro do camarote e fazem show de mais de uma hora dentro do camarote. E eu ficava me perguntando: “e o folião que pagou o bloco para sair com esse cara?”. O cara foi para dentro de um camarote fazer show, entendeu?
 
CH: Bell Marques faz isso, Ivete faz isso. Então, esses artistas, estão sem foco ou com o foco equivocado?
RC: Nesse aspecto... A pergunta é bem capciosa, porque eu não estou criticando ninguém, não quero nominar ninguém e já sei que no carnaval deste ano está proibida a passarela. Então, sem dar nome a ninguém, e eu acho que ninguém tem culpa. Ivete não fez isso sem foco, Durval não fez isso sem foco. Fez com uma demanda de quem estava lá dentro [do camarote]. Mas talvez, naquele momento, tivesse se esquecendo, deixado de se perguntar “poxa, será que o cara que pagou setecentos ou oitocentos reais no dia para estar comigo, está gostando disso?”. Então, isso já é uma atitude que, volta para o artista que está lá em cima, se preocupar com quem está lá embaixo. Porque, quem está lá dentro [do camarote], se aqui embaixo estiver bonito, ele vem. Agora, para quem está lá embaixo, se só estiver lá dentro bonito, ele não vem, entendeu? Então, a festa precisa de todo mundo.
 
CH: Você diz que essa nova lógica não dá espaço para a renovação musical? Por quê?
RC: Está cada vez mais difícil você lançar um produto. Primeiro: o espaço é escasso. O Carnaval de Salvador, que foi o que lançou todos nós, já não tem mais uma oxigenação de espaço. 
 
CH: Nesse caso, a criação de um novo circuito resolveria?
RC: Não é isso. Não é somente isso. A forma de um artista novo chegar, hoje, é uma forma dificílima, porque ela é muito cara. E ela, cada vez mais, inibe a criatividade dele. Por que é sempre assim: para ele aparecer, tem que ter alguém que banque; esse alguém que banque já se acha no direito de dizer que faça uma música “#partiu ou com Luíza que voltou do Canadá” porque está na moda. Aí o cara quer uma chance, quer cantar, então, “vamos lá”. Aí investe uma fortuna para o artista ser a revelação do carnaval. Achando que ser a revelação do carnaval vai dar continuidade necessária. Mas só que, muitas das vezes, o que ele está fazendo ali não é a verdade dele.
 
CH: Em seu texto, você fala do surgimento de empresários que lançam cantores que aparecem e somem. Quem desponta, no momento, como revelação deste carnaval é Magary Lord, que até outro dia, ninguém tinha escutado falar e, agora, virou um “boom”. Ele seria um exemplo disso que você falou?
RC: Não. Por quê? O que é que Magary Lord tem de diferente disso que eu estou falando? No meu entender, Magary tem um pouco mais de verdade. Ele está fazendo o trabalho dele sem uma fórmula. Eu não sei o que vai acontecer, mas eu não deixo de ver ali uma oxigenação da música e meio retrô. Não tem nada de tão novo, é meio retrô o trabalho que ele faz. Gerônimo fazia coisas assim e isso é bacana, porque oxigenou. Saiu daquele modelo de que tem que ser a musiquinha pensando em... A música para o micareteiro. A música de axé virou música de micareteiro e ela não era música de micareteiro. Ela era uma música de povo. Então, quando eu faço uma música pensando só no cara que vai vestir o abadá, eu mudei meu foco. Eu tenho que fazer música para quem vem pro carnaval. As músicas estão perdendo o foco, porque os artistas pensam “eu vou cantar para aquele cara ali, porque é quem me dá dinheiro”. Mas, gente, só compra abadá, se existir pipoca. Sem pipoca, para que abadá? Uma coisa depende da outra. Todo mundo tem que estar ligado nisso para que a festa volte a ser festa popular. Senão, fecha e faz um carnaval indoor.
 
CH: O que você pensa sobre o pagode, Ricardo Chaves?
RC: O pagode é verdade. O pagode não surgiu com um grupo que sentou em volta da mesa e disse “vamos criar o pagode, vamos investir no pagode”. O pagode apareceu. Da mesma forma que o samba-reggae apareceu; da mesma forma que a música que a gente fazia na rua, apareceu. Ninguém sentou para criar.
 
CH: Ricardo, quando você escreveu seu desabafo sobre o carnaval, você antecipou que as pessoas poderiam falar que você estava criticando agora porque já “morreu”.
RC: É porque, principalmente aqui na Bahia, por essa volatilidade, essa rapidez que se cobra, tem a história dos “assassinatos dos artistas”. Então assim, o cara de repente saiu da mídia por algum motivo – pode ser pessoal, pode ser profissional, pode ser opcional, pode ser qualquer coisa, não interessa -, seja ele novo ou velho: morreu, matou, não é mais nada. E quem é que ganha com isso? Como não é mais nada? Tudo isso que está aqui vem com a construção de prédios: você bota o primeiro tijolo, o segundo tijolo e assim por diante. E tem artistas que têm uma representatividade fundamental em tudo isso que está acontecendo hoje e que não podem ser tratados como, como... Nada!
 
CH: Você acha que é julgado dessa forma pela mídia?
RC: Não, eu não me preocupo com isso, não. Eu sou muito bem consciente. Eu sei o que aconteceu comigo, não necessariamente preciso expor na mídia, eu nunca tive vergonha e nem me faltou coragem para falar e bater em coisas quando eu tinha que bater. Então, sempre que você coloca um pouco a cara, você sofre um pouco mais, certo? Eu sempre, desde o início, tive preconceitos ao contrário. Porque as pessoas só pensam preconceito de um lado. Porque desde que eu apareci, veio o rótulo: “mauricinho”. Beleza. Tudo bem. Não tem problema nenhum. Tinha gente que dizia “Ricardo é legal, mas é mauricinho”. O que é que tem uma coisa a ver com a outra? A música é legal? É, mas é mauricinho. Então, eu sempre convivi com isso, mas eu sempre acreditei na música. E se eu estou há 30 anos na música é porque... Porque ninguém fica 30 anos porque é mauricinho. E a minha carreira já está marcada na vida de muitas pessoas.