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Entrevista

Cesare La Rocca detalha atuação do Projeto Axé, que completa 25 anos - 27/04/2015

Por Estela Marques / Luiz Fernando Teixeira

Cesare La Rocca detalha atuação do Projeto Axé, que completa 25 anos - 27/04/2015
Fotos: Bruna Castelo Branco/ Bahia Notícias

O italiano radicado em Salvador Cesare La Rocca é o presidente do Projeto Axé, organização não-governamental que auxilia crianças e adolescentes em situação de rua através da educação e da arte. A ONG completa 25 anos em 2015, mas La Rocca continua insatisfeito com o que foi feito e irriquieto em relação à atenção dada aos jovens no Brasil. "Tem um artigo da constituição que diz que compete ao estado atender a criança com absoluta prioridade. A presidente da república, os ministros, os governadores e os prefeitos, na base desse ditado constitucional, poderiam ser presos por omissão. Mas as prioridades são outras para os governantes", afirmou o educador. Dentre outros assuntos, La Rocca falou sobre o processo de aproximação que é feito com as crianças e sobre como é importante a figura da família para a educação dos menores.

Que balanço o senhor faz de metas alcançadas e de dificuldades ultrapassadas nos 25 anos de existência da fundação? 
Na verdade, o que eu falo sempre quando me perguntam sobre os 25 anos, eu digo imediatamente: eu sou um perene insatisfeito. Nesta área, a gente não pode ficar muito satisfeito porque quanto mais crianças são acolhidas, mais aparecem nas ruas e nas praças dessa cidade. Ou seja, os desafios não acabam nunca, sobretudo por um problema fundamental: qual é a “torneira” que joga nas praças e nas ruas de salvador tantas crianças fora da família, fora da comunidade e fora da escola? A “torneira” é a falta de políticas públicas. Se existissem políticas públicas implementadas seriamente, não só aqui em Salvador, mas no Brasil, não teriam tantas crianças obrigadas a abandonar as famílias, as escolas, a comunidade de origem, para fazer da sua moradia a praça e a rua. Uma coisa importantíssima que eu sempre digo é que não existem meninos de rua, o que existem são meninos fora da escola, da família e da comunidade. Meninos de rua... Não foi o asfalto que pariu essas crianças, elas tiveram uma família e repentina ou gradativamente a perderam, até chegarem a quebrar os laços e os vínculos com a família de origem. Então, quando me perguntam sobre o balanço, eu não digo que não há resultado. Há resultado, tão verdade que a gente acompanha estatisticamente esses resultados. Entre 85% e 87% das crianças acolhidas não voltam a delinquir. Isso não significa que todas elas estão com curso universitário ou com o segundo grau completo, mas todas elas tiveram uma ferramenta para lutar pelo seu lugar ao sol.
 
Como funciona a aproximação do projeto com as crianças depois que ela saem? Como é a rotina?
 
25 anos atrás a única porta de entrada para o Axé era a educação de rua, ou seja, esses educadores profissionais, selecionados e formados permanentemente, eram colocados em contato com as crianças que estão nas ruas dessa cidade. A educação de rua não é um approach, não é uma caça às crianças, por isso nós lutamos por essa denominação. É possível educar na rua? Paulo Freire dizia que claro que é possível, desde que o projeto não termine na rua, mas que continue depois em espaço mais apropriado para desenvolver atividades. Naquela época, nós tínhamos 25 educadores de rua. Minha luta desde o início foi não trabalhar com voluntariado. Não porque a gente não respeita o voluntário, mas porque educação é uma coisa tão séria que é impossível improvisá-la. Voluntariado tem que ser feito desde que seja ao lado de profissionais da educação. E é por isso que nós trabalhamos com pessoal selecionado, contratado e remunerado. Então, esse processo de aproximação das crianças que estão na rua requer uma tecnologia pedagógica que o Axé fundamentou teoricamente. Três pontos são fundamentais na aproximação com as crianças. O primeiro é a paquera pedagógica, que é feita sempre de olhares, como a paquera normal, afetiva. Feita de olhares, de caretas, de sorrisos, etc., até que o menino fique tão curioso que se aproxime. “Quem vocês são? São da polícia, são da prefeitura, são do juizado?” E lá começa esse processo de paquera. Quando essa paquera já aproximou educador e educando, então intervém o namoro pedagógico, em que o menino já se sente acolhido, já se sente amado, por um adulto positivo, porque ele só conheceu figuras negativas de adulto. Desde a família até os transeuntes, a polícia, os exploradores, os traficantes, etc. Se conclui esse processo com a intimidade pedagógica, o aconchego pedagógico. Essas três denominações não são apenas uma linguagem pitoresca. Quero colocar em evidência do papel, na educação, do lado afetivo.

 

Essa criança passa um limite de tempo específico no projeto? 
Na rua eu não posso dizer quanto tempo dura o processo, nem mesmo depois de 25 anos. Posso dar indicações. Pode ser de um mínimo de três ou quatro meses que dura esse processo de aproximação, até a criança dizer: e se eu quiser sair da rua, o que é que o Axé vai fazer por mim? E a resposta é sempre a mesma. O Axé não vai fazer nada por você. Se você quiser mudar essa realidade, então juntos podemos construir um novo projeto de vida. Quando a criança diz que quer, então o educador leva essa candidata a ser educanda do Axé a várias atividades pra ver onde está indo o desejo da criança. As atividades que nós temos são fundamentadas em dois grandes princípios. O primeiro é aquele que nós chamamos de pedagogia do desejo. Essas crianças deixaram de desejar e sonhar. Então há a estimulação permanente para que elas voltem a sonhar e a desejar. O outro imenso instrumento é “arteducação”, que nós colocamos dessa forma para colocar em evidência que a arte é a própria educação. Ela não é um instrumento para educar, nós superamos a visão instrumental da arte e a substituímos por uma visão extremamente globalizante onde arte e educação se confundem mesmo tendo, evidentemente, suas respectivas peculiaridades. Quando a criança ingressa no Axé nós não temos como repeti-lo, como a escola tem. Porque em primeiro lugar o processo educativo o tempo não pertence ao educador, ele pertence a criança. A perversidade da escola, não só no Brasil, é dizer que em 273 dias você tem que aprender tantas matérias ou senão você é burro. No Axé não existe ano letivo. Podem entrar a qualquer momento do ano. Entrando, nós acolhemos entre oito e 25 anos, ou seja, porque vamos para além dos 18 anos? Porque se um adolescente entra no Axé com 16, 17 anos, como é que em um ano ele muda completamente o seu comportamento? Precisamos esticar. Até o favorecido por essa escolha pela política pública federal, de educação para a juventude. A Unesco também começou a trabalhar as políticas para a juventude, e o Axé faz seis anos que atende até 25 anos. Quanto tempo dura este processo, também é individualizado, não posso precisar. Não pode ter exclusão, tem avaliação permanente, mas não exclusão, porque o Axé atende aquelas crianças que ninguém quer, que já passaram pela escola e foram expulsos, que já passaram pelas instituições públicas, pelos assim chamados orfanatos, sem ter concluído nada. Então, quando a criança tem outras oportunidades e não tem para onde ir. Nós superamos também um fato importante que a senhora deve estar pensando. Essas crianças que estão na rua, onde irão dormir depois? Nós não aceitamos a internação da criança. Quando a criança entra numa visão de controle ela perde tudo aquilo que ela ganhou na rua, em termos de criatividade, eles são empresários de si próprio na rua, sabem dividir o tempo e o trabalho para ganhar dinheiro de qualquer maneira, até roubar. Mas é ganhar dinheiro. Alimentação, recreação, diversão, mas e depois quando entram nessa instituição, está tudo organizado pelos adultos e ele perde essa capacidade de se auto gerir. Isso é uma perda irreparável porque paradoxalmente a vida de rua tem aspectos positivos também. Antes eu dizia que o tempo pertencia ao educando e não educador e eu queria colocar em evidência isso: o menino de rua odeia falar do passado, porque é só sofrimento. Só abre o seu passado quando se constrói a plataforma de confiança recíproca entre educador e educando. O futuro está encerrado em 24h porque ele não sabe se amanhã ele estará vivo. Ele é o grande senhor do hoje. Ele domina o seu hoje, sabe como organizar as 24 horas. Então quando a gente tem o desafio educativo de esticar esse futuro para além das 24 h, o menino começa a ver então que pra ele também tem jeito. Esse conceito do tempo é fundamental para o processo educativo. Eu continuo sempre dizendo que a coisa mais perversa é essa perpetuação do tempo que a criança deve estudar. Isso é terrível. Outra perversidade da escola é que o menino faz bagunça e coloca no fundo da sala de aula. Ele, que já está excluído e marginalizado, se a escola não acolhe ele, ele não perde nada para não ir para a escola. Se ela não dormia mais na rua ou na instituição, pra onde é que ela vai? O Axé trabalha com três grandes retornos: o retorno para casa, para a escola e para a comunidade de origem.
 
Qual o papel da família nesse processo? 
Quem nos ensinou que existe uma referência familiar fora os próprios meninos. Quando se chega em um momento do processo de educação na rua, em que o menino tem confiança no educador, a primeira pergunta que ele faz depois de um tempo é: “Você quer ir lá em casa?”. Ou seja, existe uma casa. Nós aprendemos que não é a família biológica do menino, mas no maior número dos casos é a figura feminina que prevalece. Pode ser a mãe, a irmã, a avó, a vizinha, até mesmo uma madrinha, mas existe um “lá em casa”. Nós temos um setor do Axé que se chama gerência de apoio às atividades com as famílias e as comunidades de origem das crianças. Quando ele convida para ir em casa entra em jogo o processo de interfases do Axé. Entre o educador de rua, que está trabalhando com o menino, o assistente social, do setor de gerência de família, e alguém da unidade que deverá acolher o menino. Somos nós que nos deslocamos até lá. Hoje posso afirmar que é impossível se educar se não tiver essa aliança estratégica com a família de origem. Isso nos ensinou que é impossível educar sem essa coparticipação da família e da escola. Sou contrário à escola de tempo integral, para nós é mais importante a educação em tempo integral, na escola e com a família, menos nos finais de semana. Queremos deixar o menino com alguma liberdade para fazer suas escolhas. A duração do menino no projeto não é pré-determinada. Quando percebemos que ele se apropriou dos elementos ele sai do sistema, mas pode ficar até os 25 anos.


 

De que modo os pilares do projeto Axé estimulam o desenvolvimento da criança e interferem na sua vida adulta? 
O Axé foi um dos primeiro a declarar que é impossível educar sem a participação da arte, da beleza e da estética. Quando comecei a falar isso 22, 23 anos atrás, eu fui crucificado. “Como você fala desse temas com esses meninos? Você só tem que encher a barriga deles, porque eles estão com fome”. Então o que nós descobrimos através dos meninos e de Joãozinho Trinta, que escreveu de forma genial há 30 anos que quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta é de beleza. Ele sabia muito bem disso, já que as escolas de samba em que ele trabalhava eram todas formadas por pobres das favelas do Rio de Janeiro. Partindo disso, nós entendemos que é impossível se educar sem a participação da estética, da beleza, da arte e da cultura. Hoje nós temos em unidades essas linguagens artísticas que nós inventamos. Este mergulho nessas linguagens artísticas, como a capoeira, leva a criança a se sentir novamente bonita, porque deve se preparar para o espetáculo. O aplauso que elas recebem nas apresentações que nós organizamos é um aplauso à vida que esses meninos conseguiram novamente construir. Quando há uma turnê par ao exterior, por exemplo, eles são preparados para ingressar na arte renascentista, por exemplo. André, um jovem de 16 anos, chorou quando entrou na sala em que estava o Davi de Michelangelo. Isso é a arte na forma da educação e vice-versa. Também há todas as modalidades musicais, percussivas, de canto, também há moda pedagógica em que os meninos aprendem corte e costura, tudo isso é arte, através da moda local e da moda internacional.
 
Desde o início do projeto muita coisa mudou, como o sistema político, a economia e até mesmo o século. E houve a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O que é que o senhor percebe de avanço e de mudança ou de retrocesso em relação ao tratamento público para as crianças? 
Certamente do ponto de vista legislativo o Brasil foi extremamente competente. Veja a constituição de 1988 e o estatuto de 1990. Muitas nações copiam a legislação do Brasil. Ela é adequada, mas o que aconteceu? Ficou o papel em braço, ou seja, pouquíssimo foi realizado. Tem um artigo da Constituição 227 que diz que compete ao estado, à família e à comunidade atender a criança com absoluta prioridade. Essa expressão não existe em nenhuma outra constituição do mundo, mas cadê essa prioridade? A presidente da República, os ministros, os governadores e os prefeitos, na base desse ditado constitucional poderiam ser presos por omissão, porque é com absoluta prioridade. Mas as prioridades são outras para os governantes. Eu sinto isso com profundo sofrimento porque participei de toda a luta para o estatuto quando estava na Unicef, foi uma luta para que ele fosse escrito a mil mãos, como foi escrito. O velho código de menores foi banido e foi substituído por essa lei maravilhosa que é o ECA. Nenhuma lei é perfeita, mas em sua substância é um grande avanço do Brasil. O que não avançou foi a sua prática. Fico triste porque esse avanço foi conseguido através da luta dos movimentos sociais, hoje isso não ocorre mais.
 
Há mais ou menos um mês foi aprovada a tramitação da redução da lei da maioridade penal na câmara dos deputados. O que o senhor acha dessa lei? 
É uma tragédia, se for aprovado vai ser uma tragédia, e não é apenas porque o sistema carcerário é uma porcaria. Não é só por esse motivo. Eu trabalhei na Itália num cárcere de menores, em Milão, o maior da Itália, e era um carecer mesmo, porque já naquela época, na Itália, a idade era 14 anos. Essas crianças tinham o discernimento na família, na escola, na comunidade, ou seja, a capacidade de entender. Cadê o acesso à educação das crianças pobres daqui para exigir o discernimento deles. Aqui está tudo atrasado. Agora se colocar um jovem de 16 anos em um presídio vai virar o que? Prostituta, seja homem ou mulher, dos grandes bandidos que estão presos lá dentro. Se ele era “formado em bandidagem”, ele vai fazer pós-doutorado na cadeia.

 

Quais foram as experiências que te trouxeram para Salvador e o levaram a criar o projeto Axé? 
Eu não escolhi Salvador, foi Salvador que me escolheu. Quando me demiti da Onu no final dos anos 80, eu recebi alguns convites, dentre os quais um da organização Terra Nova, que queria abrir um escritório de representação no Brasil e tinha escolhido a porta do Nordeste, ou seja, Salvador. Eu tinha escrito por cinco anos por conta da minha convivência com Paulo Freire quando ele voltou do exílio, eu o convidei para ser consultor pedagógico do Unicef, então eu estava escrevendo um projeto que discutia semanalmente com ele, ainda sem nome. Eu pensava que esse projeto precisava ser implantado em uma megalópole como Rio de Janeiro ou São Paulo para que a caixa de ressonância pudesse ser ampla, mas os dirigentes fincaram o pé disseram que precisava ser em Salvador, e foi assim que começou o processo de que eu falei.