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A Datacracia como provocação e alerta

Por Heleno Rocha Nazário

A Datacracia como provocação e alerta
Foto: Acervo pessoal

É preciso pensar em um novo contrato social que dê simetria a governos, corporações e cidadãos quanto ao acesso e uso dos dados gerados pela atuação na Internet. Esse foi o alerta do sociólogo belga Derrick de Kerckhove em sua conferência sobre Datacracia no Seminário Internacional da Comunicação, em Porto Alegre, no final de 2017. A informatização crescente altera a relação entre governantes e governados, aumenta a eficiência do aparato estatal, amplia a presença digital de uma pessoa e, como resultado direto, gera uma cornucópia de rastros digitais deixados pela navegação individual - riqueza acessível e comercializável entre empresas e passível de ser empregada pelas administrações públicas, mas em boa parte opaca ao escrutínio de contribuintes e usuários.

 

De Kerckhove tem largo histórico de pesquisas em temas afeitos à Comunicação, enquanto discípulo direto de Marshall McLuhan e diretor do programa de estudos que leva o nome do famoso teórico da comunicação na Unviersidade de Toronto, Canadá, por mais de duas décadas. Na sua fala ao público, mencionou a diferença entre a Cingapura pobre e descuidada que conheceu nos anos 1970 e a atual, mais rica e bem provida de modernidade. Daqueles tempos para cá, uma ditadura “esclarecida” optou por controlar a sociedade multicultural ali existente com regras de conduta puníveis com multa. A venda de chiclete, por exemplo, deixou de ser negócio ali porque mascar chiclete é ilegal. Andar nu dentro da própria casa é considerado ali um ato pornográfico. A pujança do país tem como uma das contrapartidas o forte controle estatal sobre o comportamento dos seus habitantes.

 

Se a tecnologia digital permitiu ampliar o acesso ao conhecimento, por outro lado está também servindo como suporte para a vigilância. Para além das câmeras onipresentes, trata-se também dos rastros deixados pela navegação em sites, aplicativos e plataformas de redes sociais. Produtos procurados, conteúdos visualizados, emoções partilhadas, tudo o que resulta de nossos cliques e escolhas na Web são marcas de nossa passagem pelo espaço digital e também ativos que podem ser usados com diversos fins, do marketing persistente (eu diria “persecutório”) às investigações criminais.

 

É para marcar essas tendências que De Kerckhove fala em datacracia, termo que ele mesmo define como exagero e provocação. Datacracia é a incorporação da estrutura de dados para a administração dos espaços. Assim, os algoritmos que regulam as atividades das plataformas de redes sociais, dos sites são poderosas ferramentas para a gestão do ciberespaço e também das dimensões física e mental, para o bem e para o mal. Não é uma profecia, mas uma forma de ver o que já está ocorrendo em um mundo cada vez mais online. Também não se trata de neoludismo em relação às tecnologias de informação e comunicação; está mais para um chamado à reflexão.

 

                O recente anúncio do governo chinês de um programa de reputação e crédito social para os seus mais de 1 bilhão e 300 mil cidadãos é um exemplo mais extremo. Por meio de sua conduta (verificável, especialmente, pelos rastros digitais e manifestações na rede), uma pessoa poderá adquirir bônus, que darão acesso a coisas que nós, aqui no Brasil, temos como possibilidades independentes de nossas opiniões políticas: acesso a crédito bancário, liberdade de ir e vir em viagens, liberdade de consumo. Em caso de má conduta, o cidadão perderá pontos e não conseguirá, por exemplo, uma vaga para seus filhos em um bom colégio. E o governo é o juiz dessa conduta, arbitrando o que provoca ganho ou perda da pontuação. Se for de fato implantado, se terá um controle mais eficiente e um estado policial mais poderoso, instalando de modo potente a autocensura como habilidade de valor socioeconômico.

 

De Kerckhove destaca a tendência de sacrifício da individualidade em prol da comunidade como um elemento dessa mudança. E somos cada vez mais convidados a participar dessa exposição contínua, ou como o sociólogo descreveu, esse “estado de confissão constante”. Se os povos asiáticos são mais dispostos a abrir mão de sua individualidade em prol de benefícios coletivos, o individualismo ocidental oferece uma barreira cultural mais resistente – mas superável. McLuhan já havia afirmado que o cidadão ocidental foi “engolido” pela televisão. A Internet e os dispositivos de acesso engoliram as mídias anteriores, e as pessoas junto. São o que De Kerckhove chama de psicotecnologias, por mudarem a forma como a mente humana se relaciona com a informação, a memória, o conhecimento.

O uso dos dados é um tema que precisa ser mais discutido, especialmente porque o aumento da informatização e o uso de algoritmos e técnicas de gestão de dados devem ser avaliados de forma equilibrada. Os ganhos de eficiência e de segurança não deveriam suprimir a liberdade e a transparência. A sugestão de De Kerckhove é pensar em um novo tipo de contrato social no qual seja possível definir papéis justos entre cidadãos, governos e empresas na avaliação do sistema, a transparência e a responsabilidade de implantação de uma ordem política com base na datacracia.

 

Pode soar estranho falar disso em um país como o Brasil, com as mazelas socioeconômicas e educacionais de sua população e a dificuldade em estender uma malha lógica de qualidade no território. Ou ainda com a resistência de parcelas do poder público em fazer valer normas de transparência e controle social no uso de recursos dos contribuintes. No entanto, esse debate inclui outros âmbitos relacionados à captação e uso dos dados gerados pela navegação e pelos dispositivos móveis, como a forte presença brasileira em redes sociais. E é justamente pelo potencial de crescimento do número de usuários de tecnologias, pela tendência de mais presença de governos e de pessoas no ciberespaço e pelas possibilidades de mudanças positivas (mais transparência e participação social) e negativas (controle comportamental, restrições diversas à liberdade) que falar sobre o que se está fazendo com os recursos computacionais e a pletora de dados coletados é relevante e atual no nosso país - ainda mais em ano de eleições.

 

*  Heleno Rocha Nazário é jornalista e mestre em Comunicação Social (PUCRS)

 

 * Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias