O capital faz 150 anos
Quando o primeiro volume de O capital circulou há 150 anos, o comunismo ainda era uma utopia impossível e houve completo silêncio na Alemanha. Foi tamanho que Marx e Engels apressaram-se em pedir a amigos para que escrevessem falando do livro, mesmo que fosse para criticá-lo. Mas não o deixassem prisioneiro do véu da indiferença com que a crítica o ameaçava nos jornais.
Hoje, a situação inverteu-se: o livro tornou-se quase tão conhecido quanto a Bíblia e influência socialistas em todo o mundo, a despeito da dissolução da URSS. Não é por acaso que O capital nasceu sob o signo do silêncio e sua redescoberta prenuncia um retorno às ideias de Karl Marx, mesmo que timidamente. O livro é uma síntese das utopias e as grandes mudanças que as anunciam.
Afirma Roman Rosdolsky, autor do clássico Gênese e estrutura de o capital de Karl Marx: "Hoje, o desenvolvimento técnico chegou a um ponto no qual os trabalhadores poderão finalmente libertar-se da 'serpente de seus tormentos', da tortura sem fim do trabalho cansativo,monótono e fragmentado, para se transformarem de meros apêndices em verdadeiros dirigentes do processo de produção. Nunca estiveram tão maduras as condições para uma transformação socialista da sociedade, nunca o socialismo foi tão imprescindível e economicamente viável."
A sociedade amadureceu. Coincidentemente, a Revolução russa está fazendo 100 anos em 2017. A URSS não resistiu a passagem de tanto tempo. A juventude dos tempos também provocou mudanças fora da Rússia. A necessidade de democracia - que seria o socialismo com liberdade - se afirmou. Mas por que tamanho medo de O capital ? Por que tanta rejeição à utopia? Ha uma inexorável dialética entre a obra de Marx e os tempos modernos, de tantas e tão rápidas mudanças tecnológicas, de tamanha e tão permanente instabilidade. Onde começa a desumanização do trabalho? Quais os problemas da má dis tribuição de renda? Quais os seus nexos com a luta de classes?
Em O capital, Marx advoga a extinção da lei do valor no socialismo. Defende a extinção do mais trabalho das massas em benefício e sob o controle de poucos. O trabalho " é comum a todas as formas de sociedade", argumenta Marx. A mais valia, não. Como não são naturais as formas históricas de trabalho - escravo, servil , assalariado. Imposta de fora para dentro, são repulsivas e fazem o não trabalho ser associado à liberdade e a felicidade.
0 primeiro volume de O capital foi publicado em Hamburgo em 1867 e a primeira nação a traduzi-lo seria a Rússia em 1872. Com a morte de Marx, em 14 de março de 1883, Engels publicaria os livros II e III, respectivamente em 1885 e 1894, com base em seus manuscritos.
Embora com a saúde bastante debilidade, Marx trabalhou intensamente no manuscrito de O capital livro III, analisou a Comuna de Paris ( " um movimento real " para superação da experiência operário na Europa em 1848) e considerou a possibilidade da irrupção da Revolução Socialista na Rússia. No prefácio da edição russa do Manifesto Comunista, em 1882, reitera sua posição: a revolução na Rússia poderia ser um símbolo para a revolução operária no Ocidente. E, nesse sentido, O capital foi determinante . Mais do que uma obra econômica, é filosófica n os seus conceitos e concepção. Sua atualidade hoje é total, por força daquilo que Marx chamou de " utopia monetária" . Uma inversão completa da individualidade que transforma " a fidelidade em infidelidade, o amor em ódio, o ódio em amor, a virtude em vicio, o vício em virtude, o servo em senhor em servo, a estupidez em entendimento, o entendimento em estupidez..." Em outras palavras, o dinheiro, isto é, o capital, é " a confraternização das impossibilidades" pois o ser humano, enquanto ser humano, só pode trocar aquilo que representa a qualidade do mundo objetivo e natural. Ou seja: amor por amor, confiança por confiança, lealdade por lealdade. Nunca qualidades que só existam do ponto de vista do possuidor do dinheiro. Basta ver o que tem acontecido no Brasil dos dias atuais em que em nome do dinheiro vale tudo ou tudo &e acute; justificável. Da perda da reputação, à morte e a prisão.
* Francisco Viana é jornalista e doutor em Filosofia Política (PUC-SP)
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