Usamos cookies para personalizar e melhorar sua experiência em nosso site e aprimorar a oferta de anúncios para você. Visite nossa Política de Cookies para saber mais. Ao clicar em "aceitar" você concorda com o uso que fazemos dos cookies

Marca Bahia Notícias
Você está em:
/
Artigo

Artigo

Quem cuida de quem cuida?

Por Marta Castro

Quem cuida de quem cuida?
Foto: Acervo pessoal

Nos últimos anos tive a oportunidade de dar seminários e atuar como consultora em algumas instituições de saúde, que cobriram praticamente todo o universo da assistência: hospitais, clínicas, laboratórios e hemocentros. 

 

Quando comecei, fui alertada, às vezes de forma direta, às vezes de forma indireta (piadinhas, por exemplo) sobre o desafio da convivência com os médicos e sobre os conflitos entre estes e seus suportes na assistência, em especial os enfermeiros. Contrariando todas as profecias apocalípticas e olhando muito além do jaleco, me deparei com seres humanos incríveis e com questões interessantes, que poderiam facilmente explicar (apesar de não justificarem) o estereótipo vigente.

 

Nossos profissionais lidam com desafios para os quais não foram devidamente preparados por suas faculdades, estão se adaptando a uma mudança grande no perfil do assistido, são parte de um sistema que não atende a nenhum dos atores envolvidos,

 

O paciente e sua turma

Um dos aspectos a serem considerados neste contexto é formação. As faculdades de medicina (e muito provavelmente de enfermagem, fisioterapia, nutrição, etc.) quase não oferecem disciplinas relacionadas a comportamento e relacionamento humano. Depois de cinco anos de formação, mais alguns de residência e, não raro, mestrados e doutorados, além atualizações constantes para dar conta dos avanços no campo da pesquisa e da tecnologia, o médico tem mesmo é que saber lidar com o paciente. Um paciente que quase nunca está no singular, porque geralmente vem acompanhado. E tem mais, essa turma muito frequentemente está com dor, ou tem seu estado de espírito alterado, mesmo num processo preventivo. É a pessoa que tem alguma coisa ou que teme descobrir que tem alguma coisa. E outras que têm vínculo afetivo ou de outra natureza com essa pessoa, e que teme por ela e por si.

 

A área assistencial acaba atraindo perfis cuidadores, mas só querer cuidar não assegura o bom atendimento e a boa comunicação. É necessário entender de modelos mentais e estruturas de personalidade para poder se comunicar na perspectiva dessas pessoas e não de si mesmo. É necessário entender de empatia, aprender a estabelecer rapport, para assegurar a harmonia do processo. Algumas pessoas têm o dom, mas no campo da administração, entendemos estas coisas como habilidades que podem ser desenvolvidas. Por que não desenvolvê-las nas equipes assistenciais?

 

O paciente doutor

Estamos vivenciando uma mudança no perfil do paciente. Antes ele era ignorante, hoje ele é informado. Tudo bem, nem sempre as informações do “Dr. Google” são confiáveis, mas está cada vez mais comum consultá-lo.  Nesta hora, é comum que os profissionais de saúde errem na dose da crítica e isso não é bom. O certo é acolher o interesse e a curiosidade da pessoa, para não diminuí-la nem colocar em cheque a sua inteligência. Não, esta pessoa não estudou como você, mas nem por isso ela é burra. Orientar sempre é o melhor caminho, mostrando onde estão as melhores fontes em livros, revistas e sites; se necessário, sugerir espaços alternativos de troca e aprendizagem, a exemplo dos milhares grupos de ajuda por especialidades que estão se formando e se fortalecendo na internet.

 

Esta semana conversava com uma amiga, cujo filho é portador de uma síndrome rara. Foi através de um desses grupos que ela conseguiu acessar os profissionais adequados para o tratamento, encontrou apoio para suas angústias e se capacitou e fortaleceu para argumentar com todos que atendem seu filho. Talvez hoje ela saiba mais do assunto que muitos médicos e, acima de tudo, ela sabe da doença na perspectiva do paciente, o que pode ser muito útil para o médico se ele tiver disposto a escutar. Afinal, como dizia o filósofo francês Blaise Pascal, “ninguém é tão ignorante que não tenha algo a ensinar e ninguém é tão sábio que não tenha algo a aprender. ”

 

O paciente cliente

Outro aspecto sobre a mudança do perfil do paciente, outra novidade é que ele agora é cliente. Esse advento tem origem, a meu ver, em três movimentos distintos, mas complementares: a consolidação no Brasil do Código de Defesa do Consumidor e de suas instâncias de apoio; a consequente judicialização das relações de consumo, inclusive e principalmente a saúde; e os programas de qualidade, que trazem no seu bojo a temática dos direitos e deveres do paciente.

 

A palavra “paciente” vem do latim "patientem", que significa o que sofre, o que padece.  Significa também aquele que sabe esperar, sem pressa, o curso dos acontecimentos. A etimologia tem uma conotação de passividade, que não mais se adequa aos tempos atuais. O paciente está empoderado: ele exige retorno sobre cada real investido; ele cobra muito mais do que o conhecimento técnico, considerando na sua experiência aspectos até então acessórios como pontualidade e conforto; e ele quer que suas decisões sejam respeitadas, inclusive a decisão de morrer.

 

Lembro dos dois anos que minha vó passou entrando e saindo de hospitais, dos 92 aos 94, dizendo nos seus raros momentos de lucidez que estava cansada. Ela teve o acompanhamento dos melhores profissionais, mas a gente volta e meia se estressava com o sofá do hospital, ou a comida da clínica, ou a demora no atendimento. Tinha sempre um “mas”... O médico é ótimo, mas... as enfermeiras são uns amores, mas... visão de cliente e cliente chato.

 

Ainda sobre minha vó, ela já tinha vivido tudo que podia viver, mas no maior empenho do mundo, médicos e enfermeiros faziam o possível para salva-la. Eles foram treinados para isso, para assegurar a vida. E agora, de repente, têm que reaprender as regras, muitas vezes abrindo mão dos de seus próprios valores pessoais, para respeitar os valores dos outros.

 

O médico gestor

Outro desafio grande que os médicos e outros profissionais de saúde enfrentam é conciliar assistência e gestão. Gestão das suas vidas, do seu tempo, gestão na sua atividade profissional em diferentes instituições, cada qual com sua cultura e com seus procedimentos. Eles também não foram preparados para emitir nota fiscal, gerir indicadores, fazer escalas, emitir relatórios, preencher formulários, liderar e treinar equipes, cumprir metas de qualidade, reduzir custos... Se a responsabilidade era grande, dar conta dessa administração é uma responsabilidade ainda maior. Por trás de cada colaborador existe uma família e gerir significa também lidar com vidas, só que de uma outra forma.

 

Tem o médico que não tem nada de gestor e geralmente fica no prejuízo. Recentemente uma amiga reduziu a sua carga de trabalho para ajudar o marido médico na gestão de sua profissão. O que ela recuperou de cobranças atrasadas e esquecidas foi bem mais do que deixou de ganhar trabalhando. Ouvi de um cliente que às vezes eles têm que insistir para que o médico fature seus serviços.

 

Por outro lado, tem o médico que tem o perfil de gestor e, a depender das oportunidades que surjam, pode ser que em algum momento seja necessário decidir entre seguir carreira administrativa ou técnica. Essa decisão pode gerar questões internas e sistêmicas importantes: o que me realiza mais? O que é melhor para mim? Que impacto isso gera na minha família? Que impacto isso gera nas minhas finanças? O que preciso fazer para me capacitar? Estas questões precisam ser olhadas com cuidado e com certeza serão melhor elaboradas com o apoio de um psicólogo e/ou coach.

 

O verdadeiro médico é o médico verdadeiro

Recentemente a área de saúde agregou ao seu vocabulário (e à sua prática) um termo oriundo do mercado financeiro e de capitais: o disclosure. Esse termo significa transparência de informações e no segmento da saúde tem se tornado uma importante e decisiva ação na estratégia de relacionamento das instituições com seus pacientes.

 

O disclosure também está mudando o comportamento dos gestores da área de saúde, das equipes assistenciais e, principalmente, dos médicos. O erro médico era um tabu; a orientação era negar e esconder. Hoje o erro não só deve ser admitido, como deve ser usado para a prevenção de novos danos por meio da correção de protocolos e de outros aspectos identificados nos eventos adversos.

 

Em 2016 esteve no Brasil o neurocirurgião Henry Marsh, autor do livro “Sem causar mal – Histórias de vida, morte e neurocirurgia”, onde aborda a questão do erro médico. Num determinado trecho ele diz que “a tragédia da medicina é que os médicos aprendem, como tudo na vida, errando. ” E conclui: “o importante é ser honesto consigo mesmo e com o paciente. ”

 

Certíssimo na teoria, dificílimo na prática. Admitir o erro, ainda mais quando eles podem provocar a morte de alguém, mexe com a confiança, com a autoestima, com a segurança do profissional. Esta é uma mudança cultural muito forte, uma verdadeira quebra de paradigma. Aí eu volto para o início do nosso artigo. Que médico foi preparado na faculdade para olhar nos olhos de um paciente, dizer que errou e pedir desculpas? Acho que nenhum, pelo menos não aqui no Brasil.

 

Então...

Diante dessas informações, dessas percepções, dessas reflexões, eu realmente olho para o profissional de saúde como um igual, com muitas qualidades, mas também com o desfaio de gerir uma rotina louca, num sistema falido, muitas vezes sem o suporte operacional e emocional que precisam. Nesta hora eu pergunto: quem cuida de quem cuida? Graças a Deus, na profissão que escolhi, eu posso cuidar.

 

* Marta Castro é empresária, consultora em planejamento e desenvolvimento humano, professora de pós-graduação e atua também como coach executiva e de carreira
www.mcldesenvolvimento.com.br