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Onde passa um boi, passa uma boiada?

Por Tarcísio Menezes

Onde passa um boi, passa uma boiada?
Foto: Divulgação
O Supremo rachou. De um lado, Marco Aurélio, Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Carmen Lúcia, apartados de Edson Fachin, Gilmar Mendes, Teori Zavascki, Dias Toffoli e Luiz Fux. A discussão envolvia a constitucionalidade da lei cearense que regulamentou a prática da vaquejada.
 
O voto condutor do ministro Marco Aurélio, relator da ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4.983-CE), proposta pela Procuradoria-Geral da República, embora tenha reconhecido o conflito entre os valores constitucionais da livre manifestação cultural e da defesa do meio ambiente, fez prevalecer este último. Lembrou o ministro Marco Aurélio que o STF já havia julgado anteriormente situações nas quais manifestações culturais, em que havia crueldade com os animais (“farra do boi” e rinhas de galo), foram consideradas incompatíveis com a ordem constitucional.
 
O ministro Edson Fachin divergiu do colega, argumentando que a vaquejada, enquanto manifestação cultural, encontra proteção expressa na Constituição e que não há razão para se proibir o evento que avalia tecnicamente a atividade de captura própria do trabalho de vaqueiros na zona rural do país. Ainda houve dois pedidos de vista até que o STF formasse a estreita maioria de votos para considerar inválida a lei cearense.
 
Estamos aqui diante de um “caso difícil” (hard case), quando há bons e consistentes argumentos colocados por ambos os lados da questão, o que gera uma dificuldade em chegar a uma decisão que seja a melhor possível. No desenho institucional brasileiro, assim como em outros países, atribuiu-se competência para solucionar grandes controvérsias a uma Corte Constitucional, formada por juristas de alta qualificação.
 
Existe, portanto, uma saída institucional para o impasse: a “lógica de Marshall”, baseada na supremacia da Constituição e no controle judicial de constitucionalidade das leis. Isso, contudo, não nos livra de certa perplexidade, causada por uma evidente tensão entre constitucionalismo e democracia. Afinal, os deputados cearenses legitimamente eleitos pelo povo decidiram tratar, por meio de lei, sobre um tema caro à cultura popular nordestina – a vaquejada. De outro lado, um colegiado de juízes, não eleito pelo voto popular, decidiu invalidar aquela norma estadual, considerando a prática da vaquejada contrária à Constituição.
 
De qualquer modo, uma afirmação pode ser feita de antemão: aqui só passa um boi, pois a decisão do STF, por si só, não autoriza a proibição das vaquejadas em outras paragens, como a Bahia. E isso por uma razão bem simples: o objeto da ação direta julgada foi exclusivamente a lei do Estado do Ceará. A Lei nº 13.454, editada pelo Estado da Bahia em 10/11/2015, segue sendo eficaz. Some-se a isso o fato de que o STF não mais admite o aproveitamento dos fundamentos de uma decisão em outros contextos fáticos semelhantes. Dando nome aos bois: não mais se aceita a chamada “teoria da transcendência dos motivos determinantes”, o que equivale a dizer que o caráter vinculante da decisão diz respeito apenas à sua parte final, que declarou a inconstitucionalidade tão-somente da lei cearense.
 
As vaquejadas ocorrem desde o século XIX, isto é, bem antes do advento da lei baiana, que contém uma inegável preocupação com a integridade física dos animais envolvidos, algo que não havia sem a regulação. E essa carga protetiva pode definir um destino diferente para a legislação baiana. É que a tese vencedora no STF partiu da ideia de que a crueldade seria intrínseca à prática da vaquejada, o que talvez signifique que a “última palavra” sobre o polêmico assunto ainda não tenha sido dada. Com efeito, o Judiciário já começou a produzir decisões conflitantes entre si, e não é difícil imaginar uma mobilização no Congresso Nacional por uma correção legislativa, via emenda constitucional. A considerar, portanto, a forte reação em relação à decisão do STF por parte da sociedade e de seus representantes políticos, afirmar que o debate constitucional sobre a prática da vaquejada já foi encerrado é conversa para boi dormir.


* Tarcísio Menezes é mestre em direito público (UERJ) e advogado

* Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias