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O grave ressentimento do fim dos pelourinhos

Por Daniele Barreto

O grave ressentimento do fim dos pelourinhos
Na última semana, ao acessar portais de notícias para informar-se sobre as novas da política ou inteirar-se da folia momesca, o internauta mais atento percebeu que há quem se ressinta do fim dos "pelourinhos". E quem se ressente é um gestor público ocupante de um dos mais importantes cargos na terceira maior capital do país.

O secretário municipal da Fazenda, Mauro Ricardo, durante entrevista a uma rádio, afirmou - ao ser questionado sobre a demora na cobrança de que está devendo IPTU - que: "Antigamente se botavam as pessoas no pelourinho para poder pagar as suas dívidas. Infelizmente hoje não é mais assim. Hoje é a Justiça. É a Justiça quem define e o prazo; o prazo é estabelecido pela Justiça."

A parte se tratar de uma frase debochada, infame, sarcástica, merecedora de todo repúdio possível e de extremo mal gosto, o secretário demonstra - no mínimo - desconhecimento da história da terra que o acolheu como gestor e falta do - tão necessário a quem pleiteia a cadeira na qual se encontra sentado - bom senso.

Primeiro: não, secretário, não eram simplesmente açoitados "devedores" no pelourinho. Tampouco os de "IPTU". Não pretendo - nem vou - dar aula de história a quem já se tem por certo ser escolarizado (e muitíssimo bem, caso contrário não teria ocupado os cargos de: auditor fiscal da Receita Federal, Secretário Municipal de Finanças na gestão do prefeito José Serra, Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, secretário da Fazenda no governo Kassab, Presidente da Companhia de Saneamento de Minas Gerais, Presidente da Fundação Nacional de Saúde), mas vale avisar ao gestor que eram martirizados homens e mulheres negros, vítimas de todo tido de barbárie física e psicológica, submetido a sevícias sexuais de toda ordem e chicoteados até a morte. Motivo? Certamente não eram as suas "dívidas do IPTU", mas o "bel prazer" de gente poderosa (quem sabe até de muitos "fazedores de justiça" que não aceitariam, se submetidos na época, obedecer aos ditames das leis e aos prazos).

É absolutamente chocante que alguém declare "ressentimento" pelo não uso de tais práticas nos dias de hoje. E eu não estou exagerando, nem deturpando o que foi dito pelo gestor. Não! Caso ele afirmasse o uso da prática, eu poderia não concluir tal ressentimento. Mas ao utilizar a expressão "infelizmente" ele demostra claramente "ressentimento" pelo desuso do tronco e do chicote.

Sim, por que se alguém diz que "infelizmente" não pode amarrar um ser humano no tronco e açoitar - seja lá por que motivo - como se inanimado fosse, está, por óbvio, assumindo sua insatisfação com a extinção da prática. Não há outra interpretação. Ou há outro significado para "infelizmente" que eu desconheço?

Vejam só...

Que na Bahia existem ainda hoje muitos coronéis, sabe-se.

Que muitos deles sobrevivem mandando e desmandando na política baiana, sabe-se.

Que ainda há muitos nutrindo uma relação de "escravo X senhor" com seus funcionários em suas casas, fazendas, gabinetes etc, sabe-se.

Que muitos deles circundam o Secretário citado e frequentam os mesmos corredores que ele, sabe-se.

Mas o que não sabíamos é o desconhecimento de história, o ímpeto sarcástico e a falta de trato de alguém com tão vasto currículo e habilidade/proximidade com o poder...

O secretário já enviou nota à imprensa alegando que seu comentário não teve cunho racista ou preconceituoso e que se tratou de um erro. É o que se esperava dele, é o de praxe: nota na imprensa, gerenciamento de crise de imagem e, nos próximos dias, algumas ações que nos façam esquecer o "mal entendido". Isso é o óbvio quando um gestor comete um equívoco desta natureza e grandeza.

Mas uma "nota-de-praxe" não minimiza nem retira o caráter preconceituoso e debochado da afirmação proferida ao vivo. Não dá para apagar com uma "nota" o que foi dito em bom som. Não dá pra aceitar "gerenciamento de crise de imagem" quando o que se está questionando é uma postura inadequada de um gestor pago mensalmente com nossos impostos para tratar, com o mínimo de seriedade e respeito exigíveis, as questões públicas.

O fato é que é absolutamente intolerável que qualquer pessoa deboche da escravidão e dos hediondos castigos corporais que mutilaram aos milhares e levaram muitos à morte. Em se tratando de um gestor qualificado e a frente de uma pasta com tamanha responsabilidade, a afirmação e qualquer levante de defesa ou tolerância são ainda mais chocantes.

Ah, e como se não bastasse o desrespeito ao povo baiano (não só ao negro, mas a todo e qualquer baiano que tenha o mínimo de decência diante da história), ele também - com sua frase agora posta como "simples erro" - joga a população contra a Justiça, como se nela residisse todo o mal pela não cobrança aos inadimplentes. Como se em prazos e trâmites jurídicos residisse o não recebimento dos valores devidos pelos cidadãos que não honram com a obrigação de pagar seu IPTU.

Eu já fui Procuradora Geral de um município, Alagoinhas - é certo que não com os problemas de Salvador -, mas sei que a questão não é bem como o Secretário afirmou. Há alternativas viáveis - jurídicas e administrativas - para cobranças mais adequadas do que informou ironicamente o carioca.

Mas é óbvio que esse não é o caminho mais rápido para encher os cofres de uma prefeitura de dinheiro. Dá resultados muito mais rapidamente aumentar a alíquota de IPTU sem critérios - apertando o cinto do bom pagador - e jogar a culpa na impossibilidade de chicotear e na ausência de uma Justiça célere - pra, no fundo, no fundo, justificar ineficiência estatal e pôr a "culpa" em outro Poder, nesse caso o Judiciário (ou mesmo passar a mão na cabeça do mal pagador).

Deixo, como cidadão e pagadora de impostos (sem um único dia de atraso), uma sugestão ao Secretário recém-desembarcado em terras baianas: mais seriedade no trato da história e do bolso do soteropolitano.

*Daniele Barreto é advogada, pós-graduada em Direito do Estado, consultora política e colunista